Há lugar para o perdão?

“'Se não consegues entender por que é que o fazem, acabarás por te converter em alguém pior do que eles', diz Josemaria Escrivá ao seu jovem interlucocutor decidido a pegar em armas para vingar as atrocidades cometidas diante dos seus olhos". Joan-Lluís reflecte sobre a lógica do perdão num artigo publicado em "La Vanguardia"

Reproduzimos um artigo de Joan-Lluís Palos publicado pelo jornal "La Vanguardia”.

Perto do fim de uma existência marcada pelo trauma da guerra, o filósofo francês Paul Ricoeur, escreveu aquela que seria seguramente a sua obra mais polémica, Memória, Historia, Esquecimento.

A antropología do perdão. A sua reflexão partia de uma análise da realidade do mal. De um ponto de vista jurídico todo o mal merece um castigo determinado pela norma estabelecida, proporcional ao dano causado. Porém, embora sendo fundamental para o ordenamento legal (e ético) de uma sociedade, esta perspectiva é insuficiente já que elimina, em si mesma, a possibilidade do perdão. Por isso torna-se necessária uma nova aproximação. Ricoeur chamou-lhe antropológica. A antropologia do perdão resulta de um movimento inverso ao adotado pela perspectiva jurídica, e desenvolve, consequentemente, uma nova lógica. Enquanto o castigo se resolve na união iniludível entre a ação e o sujeito que a comete, o perdão centra-se no ponto que permite separar o sujeito dos seus actos. O mistério do perdão assenta nesta possibilidade de separação.

A aparição do livro coincidiu com os horrendos crimes contra seres inocentes cometidos na guerra dos Balcãs, e foi recebida com uma certa inquietação. Esta postura não era excessivamente condescendente com os perpetradores do mal?, perguntavam-se alguns. Como é que alguém que tinha perdido os pais na Primeira Guerra Mundial e passara cinco anos num campo de concentração nazi podia argumentar desta maneira? Sem a possibilidade do perdão, começando pelo perdão perante si próprio - foi a sua resposta -, a existência dos seres humanos fica aprisionada numa espiral de autodestruição. Num mundo dominado por dragões, diria Roland Joffé.

É este e não outro o território explorado pelo seu filme. “As guerras começam muito antes de ter sido disparado o primeiro tiro e acabam muito depois de se ter assinado a paz”. O primeiro postulado do aforismo com que começa Encontrarás Dragões, é pelo menos questionável. Sobretudo para quem tenha tido ocasião de ler o contributo de Conrad Russell sobre os estrondos violentos da conflituosidade. O segundo reflete uma evidência flagrante. Pelo menos no que se refere à Guerra Civil de Espanha. Basta olhar para o tratamento que o cinema lhe tem dado nos últimos anos, quase unanimemente, com a honrosa excepção do mestre García Berlanga em La Vaquilla, na sua determinação de deitar sal na ferida.

As razões do outro. Seria necessário outro filme sobre o nosso conflito fratricida? Certamente não. O que era necessário era um filme que, longe dos tópicos em moda que expulsaram os espectadores das salas, apelasse à necessidade inexorável da reconciliação para poder olhar o futuro com confiança. E que o fizesse sem sermões para espíritos cândidos. “Se não consegues entender por que é que o fazem, acabarás por te converter em alguém pior do que eles”, diz um dos protagonistas ao seu jovem interlocutor decidido a pegar em armas para vingar as atrocidades cometidas diante dos seus olhos. Alguém que dissesse que, por detrás dos estereótipos vulgares, existiram seres confrontados com múltiplas dúvidas e contradições. Quer dizer, seres humanos que resistiram a ser classificados pelos criadores de slogans. Para falar claro, que o heroísmo e a vilania se encontravam nos dois lados que se degladiavam.

Ficção e realidade. Para o fazer Joffé deitou mãos do mesmo recurso narrativo que proporcionou a Javier Cercas tão bons resultados, e não poucas criticas. A mistura da ficção com a realidade. Demasiadamente condescendente com a personagem de Josemaria Escrivá? Esta é à partida uma questão que exige menor dose de ideias preconcebidas e mais argumentação serena e fundamentada por parte de todos. Sem dúvida, o tratamento de alguns aspectos pode ser questionável. Mas a película teve a valentia de abordar alguns dos tabus domésticos que, ao que parece, o cinema espanhol era incapaz de enfrentar. Algum dia teremos de agradecer a Joffé que tenha vindo libertar-nos dos nossos próprios dragões.