Até os santos têm um passado

Roland Joffé, o realizador de “Missão”, regressa a um tema católico com um filme que apresenta São Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei, e temas de guerra, amor e perdão.

“Acho que tem de subir montanhas”, diz uma jovem, numa Casa de Saúde, a Josemaria Escrivá, fundador do Opus Dei, no novo filme de Roland Joffé, Encontrarás dragões. “Mas isso tornará tudo mais doce, quando lá chegar.”

O filme é um drama que decorre durante a Guerra Civil de Espanha com destaque para temas como traição, amor, ódio, perdão e amizade

Para Ignacio Gómez-Sancha, que reside em Madrid, produtor do filme que foi lançado nos EUA em 6 de Maio, esta frase tem um significado especial. A rodagem de Encontrarás dragões foi por vezes como a travessia épica dos Pirenéus de S. Josemaria durante a Guerra Civil de Espanha – o que faz com que a sua estreia nos cinemas seja acolhida com aclamação por parte da crítica e com casas cheias, o que é muito gratificante.

Parceria improvável

O filme é ainda especial devido à parceria improvável entre Joffé e Gómez-Sancha que lhe está subjacente: por um lado, o realizador inglês, de 66 anos, casado três vezes, que se descreve a si próprio como “agnóstico vacilante”; por outro lado, um membro do Opus Dei espanhol, de 40 anos, um gestor casado e com três filhos.

Quando se encontraram pela primeira vez em Março de 2008 num hotel em Madrid, Gómez-Sancha tinha passado seis anos a supervisionar a unificação da Bolsa de Espanha. Uma semana antes tinha sido abordado pelo primitivo produtor do filme, Heriberto Schoeffer, que o tinha contactado como potencial investidor “Não acreditei no que estava a ouvir” disse ele. “Joffé é o meu realizador favorito. A Missão e Terra Sangrenta tiveram um enorme impacto em mim quando adolescente. A ideia de que Joffé planeava dirigir um filme sobre São Josemaria e a Guerra Civil de Espanha atingiu-me em cheio.”

O que Gómez-Sancha soube depois agradou-lhe ainda mais: Joffé tinha rejeitado a ideia de um ‘bio-pic’ sobre Escrivá, e tinha escrito o seu próprio guião, insistindo numa total liberdade criativa: que o Opus Dei como organização não tinha nada a ver com o filme; e que Joffé queria situar a história do santo espanhol no contexto da Guerra Civil, com uma mensagem de perdão no seu âmago.

“Soube instintivamente que este filme tinha de acontecer”, diz ele. “Era realmente uma oportunidade única de ter alguém como Roland, que é um não crente e um homem de esquerda, a tratar S. Josemaria do modo como tratou o padre Gabriel naMissão – por outras palavras, levando-o a sério, como ele era”.

Da esquerda para a direita: O realizador Roland Joffé, o nosso jornalista Austen Ivereigh e o produtor Ignacio Gómez-Sancha

Fascinado por Josemaria

Joffé tinha ficado fascinado pelo fundador do Opus Dei depois de ver o filme de uma das suas famosas tertúlias – neste caso com um grupo da América do Sul. Uma jovem judia tinha dito a S. Josemaria que se queria converter ao Cristianismo, mas os pais se tinham oposto. S. Josemaria respondeu-lhe que o amor da sua vida era judeu, e que Deus admirava e honrava os pais dela. Joffé, filho adotivo do escultor judeu britânico Jacob Epstein, ficou assombrado com a humanidade desta resposta. “Pôs-se no lugar da jovem e no lugar dos seus pais; e compreendeu a completa humanidade da posição em que posicionava. Reconheceu que isto era um dilema vital que envolvia, tal como o amor, sacrifício da parte de alguém; mas que este sacrifício só pode ser escolhido. Deus não pede que cheguemos a Ele magoando os outros”.

Nessa noite, Joffé sentou-se e escreveu o que iria ser a primeira cena de Encontrarás dragões: Escrivá como um jovem sacerdote sussurrando aquelas palavras a um Judeu moribundo. Após tê-la escrito, o realizador apercebeu-se de que a cena continha a ideia central de todo o filme - o triunfo da humanidade sobre a ideologia. Escreveu a Schoeffer aceitando realizar o projeto – sob a condição de poder reescrever o guião partindo do zero. Gómez-Sancha, quando se encontrou com Joffé, uma semana depois de ter falado com Schoeffer, já tinha lido o guião. Dificilmente conseguia conter o seu entusiasmo. “Não conseguia compreender como um não-crente tinha conseguido compreender de modo tão assombroso o que era S. Josemaria e o que ele representava”, recorda. As três horas, que passou com o realizador, foram decisivas na vida dos dois homens. Joffé disse-lhe que talvez o filme não viesse a ser feito, porque o seu financiamento estava a ser problemático, e ele estava quase a dedicar-se a outro projeto. “Pode esperar um pouco?” perguntou-lhe Gómez-Sancha. “Acho que sei como financiar isto.”

Ele não sabia absolutamente nada acerca de filmes, mas estava muito admirado com o sentido de ética de Joffé. O realizador, por seu lado, estava impressionado por Gómez-Sancha “um modo calmo mas corajoso de ver o que era preciso para fazer com que o projeto resultasse” – e a importância que o espanhol colocava na confiança. Embora não tivesse nenhuma experiência na produção de filmes, Gómez-Sancha era um “produtor nato”, diz Joffé.

Uma centena de investidores

Gómez-Sancha abandonou os seus restantes compromissos, e transformou-se no principal produtor do filme, junto com o seu sócio, Ignacio Núñez. “O que tive de fazer foi construir uma muralha à volta de Roland para garantir que ele teria espaço livre para a sua criatividade”, diz Gómez-Sancha. “Quando damos liberdade total a um artista para fazer o que quer, ele sente imediatamente uma grande responsabilidade: não só tem de fazer um filme que toque o seu próprio coração, mas que toque também o coração dos espectadores. Acho que foi exatamente isso que aconteceu com Roland”.

Conseguiram rapidamente os primeiros milhões de dólares através de investidores espanhóis famosos. Mas então ocorreu o colapso de Lehman Brothers, e a implosão financeira de Setembro 2008. Dezenas de reuniões com investidores, que tinham agendado na costa leste dos EUA, foram canceladas. Seguiram-se meses de dor e sofrimento. Os produtores perceberam que tinham de encontrar investidores fora dos meios habituais. Levou mais de um ano com centenas de reuniões, mas conseguiram reunir o necessário para começar a filmagem em 2009. Com mais de 100 investidores de 10 países tinham conseguido quase 40 milhões de dólares – o suficiente para garantir atores de primeira linha e as dispendiosas cenas de guerra, com a cidade argentina de Luján figurando como a Madrid dos anos 1930 e a cidade espanhola de Sepúlveda representando o papel da cidade aragonesa de Barbastro, cidade natal de S. Josemaria.

Josemaria escolhe a paz e converte-se num sacerdote que luta para propagar a reconciliação

Josemaria e Manolo

Embora Escrivá e o pequeno grupo de primeiros membros do Opus Dei sejam reais, as outras personagens do filme são criações de ficção. Tal como a personagem Rodrigo, de Robert De Niro, fornece um confronto para o Pe. Gabriel em “A Missão”, em Encontrarás dragões Joffé traça um contraste entre Josemaria (Charlie Cox) e Manolo (Wes Bentley) como amigos de infância cujos caminhos na vida vão em direcções diferentes. Josemaria converte-se num jovem sacerdote de ideais, enquanto Manolo é arrastado para a Guerra Civil de Espanha como espião a favor dos nacionalistas nas frentes republicanas. Os seus segredos foram descobertos gradualmente, muitos anos depois, em 1982, por Robert (Dougray Scott), jornalista, filho de Manolo, que está a realizar pesquisas para um livro sobre o fundador espanhol do Opus Dei por ocasião da sua beatificação. O drama contemporâneo, sobre um pai e filho separados, encontra eco no drama dos anos 1930, quando a Espanha se partiu em duas.

Manolo escolhe a Guerra e torna-se espião a favor dos fascistas

Hic sunt dracones

O título do filme, retirado das palavras supostamente encontradas em mapas medievais indicando território inexplorado, Hic sunt dracones, refere-se às experiências de vida que levam as pessoas a sofrer e a reagir de diferentes maneiras. Só reconhecendo e lidando com esses “dragões”, sugere Joffé, podemos escapar ao ciclo de vingança e desumanização que tanto marcou o séc. XX e o mundo de hoje. Joffé diz “Penso que é isso que Josemaria ensinava, uma vez e outra, às pessoas que estavam a passar por experiências angustiantes: associar-se à humanidade não só dos que sofrem, mas também à daqueles que lhes causam o sofrimento”.

Joffé situou o drama no contexto da Guerra porque estava interessado no efeito da santidade nos outros e no ambiente, num tempo de extremo stress. Mas colocando aí também Josemaria proporciona à Espanha um caminho para chegar a um acordo com os dragões do seu próprio passado. Gómez-Sancha e Joffé estavam determinados a que o filme não agravasse velhas feridas, mas ajudasse a Espanha a enfrentá-las. E embora o filme mostre, pela primeira vez num filme sobre a Guerra, as atrocidades anticlericais que levaram à morte de 6.000 clérigos, fá-lo de um modo que procura entender e perdoar. Joffé descreve Josemaria afastado da politização da Igreja, tentando convencer os seus seguidores a compreender as injustiças por detrás da fúria anticlerical, deplorando igualmente o modo como a esquerda está disposta a sacrificar pessoas na prossecução dos seus ideais. “Acima de tudo, temos agora de ser semeadores de paz”, diz aos seus desolados seguidores que acabam de assistir a uma atrocidade anticlerical.

Campanha popular

Embora o orçamento do filme, a categoria do elenco e produção garantam a principal audiência, Encontrarás dragões está a ser promovido por uma campanha popular de marketing destinada a garantir que os católicos vão ver o filme em grande número. Nos EUA, a campanha está a ser organizada por Paul Lauer, do Motive Marketing, responsável pelo entusiasmo gerado quanto à Paixão de Cristo. Tal como com esse filme e com Narnia, Lauer tem estado a organizar sessões nas maiores cidades da América, com a presença de bispos, reitores de seminários e católicos ativos. A mensagem é: isto é um filme que tem de se ver, é bom no que se refere à fé, versa um tema poderoso e inspirador e deve ser apoiado.

A campanha popular tem salientado elementos do filme que se aproximam da catequese. Joffé mostra-nos que o modo como respondemos aos “dragões” do sofrimento nos define como seres humanos. A partir de uma infância de sofrimento, mas rodeada de amor, Josemaria aprende que o sofrimento tem um sentido; Manolo, pelo contrário, sofre pouco mas recebe pouco amor dos seus abastados pais, abandonando uma criança que se isola e é invejosa. Quando uma enfermeira diz a Manolo que a morte do seu pai doente é a “vontade de Deus”, ele manda-a retirar-se, incapaz de suportar a ideia de não controlar a sua vida. Josemaria, contrastando com esta atitude, é apresentado procurando a vontade de Deus, suportando a dúvida como preço do discernimento – é de todas as personagens a mais livre, e a que melhor domina o seu destino. Josemaria consegue – literalmente numa cena – mortificar o sofrimento, e não o transmitir, sendo uma vítima complacente, enquanto Manolo se torna numa vítima vingativa, convencido de que o sofrimento não tem sentido e de que o que importa é ganhar. Porém, mais tarde no filme, Manolo apresenta uma graça salvadora – ações centradas em terceiros, que se tornam na fonte da sua redenção.

Os outros caracteres principais do filme são jovens republicanos idealistas, Oriol (Rodrigo Santotro) e Ildeko (Olga Kurylenko), apaixonados um pelo outro. À medida que a guerra se arrasta, apercebem-se de que estão a ser sacrificados pelos seus líderes em Madrid e encontram refúgio um no outro. Quando isso falha, não há nada que os livre do desespero.

A misericórdia de Deus

Encontrarás dragões possui um poder emocional extraordinário, sobretudo nessas cenas que envolvem perdão. Do filme emana misericórdia de Deus. Inquirido sobre quem era o protagonista do filme, Joffé deu uma resposta que o surpreendeu tanto a ele próprio como aos que ouviram: “O protagonista do filme é Cristo. O seu significado está presente em cada momento do filme … Ele está aí, porque isto é um filme sobre o sofrimento, e Cristo está no sofrimento. Cristo está no pecado. Isto é algo que profundamente enraizado no Cristianismo – e é uma mensagem extraordinária.”

Seja qual for a sua posição pessoal acerca da religião, Joffé diz, “Não consigo negar o seu extraordinário poder criativo e redentor. Porque o meu esforço vai no sentido de apresentar “coisas da vida” – e se o fiz honestamente e está a resultar bem – acho que, nesse esforço, se revela a mensagem inefável que nos foi entregue na Cruz”.

Austen Ivereigh

St Anthony Messenger