Discurso de Bento XVI na Abertura do CELAM em Aparecida

Íntegra do discurso proferido pelo Papa Bento XVI na abertura da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe no Santuário de Nossa Senhora de Aparecida, a 180 Km de São Paulo.

Queridos irmãos no Episcopado, amados sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos. Queridos observadores de outras confissões religiosas:

É motivo de grande alegria estar hoje aqui convosco para inaugurar a V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe, que se celebra junto ao Santuário de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. Quero que minhas primeiras palavras sejam de ação de graças e louvor a Deus pelo grande dom da fé cristã aos povos deste Continente.

1. A fé cristã na América Latina

A fé em Deus tem animado a vida e a cultura destes povos durante mais de cinco séculos. Do encontro dessa fé com as etnias originárias nasceu a rica cultura cristã deste Continente, expressada na arte, na música, na literatura e, sobretudo, nas tradições religiosas e na idiossincrasia de seus povos, unidas por uma mesma história e um mesmo credo, e formando uma grande sintonia na diversidade de culturas e de línguas. Na atualidade esta mesma fé deve enfrentar sérios desafios, pois estão em jogo o desenvolvimento harmônico da sociedade e da identidade católica de seus povos. A esse respeito, a V Conferência Geral vai refletir sobre esta situação para ajudar os fiéis cristãos a viver sua fé com alegria e coerência, a tomar consciência de ser discípulos e missionários de Cristo, enviados por ele ao mundo para anunciar e dar testemunho de nossa fé e de nosso amor.

Mas o que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que seus antepassados, sem o saber, buscavam em suas ricas tradições religiosas. Cristo era o Salvador que ansiavam silenciosamente. Significou também ter recebido, com as águas do batismo, a vida divina que os fez filhos de Deus por adoção; ter recebido, ademais, o Espírito Santo que veio fecundar suas culturas, purificando-as e desenvolvendo os numerosos germens e sementes que o Verbo encarnado tinha colocado nelas, orientando-as assim pelos caminhos do Evangelho. De fato, o anúncio de Jesus e do seu Evangelho não supôs, em nenhum momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura estranha. As autênticas culturas não estão fechadas em si mesmas nem petrificadas num determinado ponto da história, mas estão abertas; ainda mais: buscam o encontro com outras culturas, esperam alcançar a universalidade no encontro e no diálogo com outras formas de vida e com os elementos que possam levar a uma nova síntese, na qual se repete sempre a diversidade das expressões e de sua realização cultural concreta.

Em última instância, só a verdade unifica e sua prova é o amor. Por isso Cristo, sendo realmente o Logos encarnado, “o amor até o extremo”, não é alheio a cultura alguma nem a nenhuma pessoa, pelo contrário, a resposta desejada no coração das culturas é o que lhes dá sua identidade última, unindo a humanidade e respeitando, ao mesmo tempo, a riqueza das diversidades, abrindo todos ao crescimento na verdadeira humanização, no autêntico progresso. O Verbo de Deus, fazendo-se carne em Jesus Cristo, se fez também história e cultura.

A utopia de voltar a dar vida às religiões pré-colombianas, as separando de Cristo e da Igreja universal, não seria um progresso, mas um retrocesso. Na realidade seria uma involução a um momento histórico ancorado no passado.

A sabedoria dos povos originários os levou felizmente a formar uma síntese entre suas culturas e a fé cristã que os missionários lhes ofereciam. Dali nasceu a rica e profunda religiosidade popular, na qual aparece a alma dos povos latino-americanos:

- o amor a Cristo sofredor, o Deus da compaixão, do perdão e da reconciliação; o deus que nos amou até se entregar por nós;

- o amor ao Senhor presente na Eucaristia, o Deus encarnado, morto e ressuscitado para ser Pão da Vida;

- o Deus próximo aos pobres e aos que sofrem;

- a profunda devoção a Nossa Senhora de Guadalupe, de Aparecida ou das diversas avocações nacionais e locais. Quando a Virgem de Guadalupe apareceu ao índio São João Diego lhe disse estas significativas palavras: “Não estou eu aqui que sou tua mãe?, não estás sob a minha sombra e amparo?, não sou a fonte da tua alegria?, não estás no aconchego do meu manto, no encontro dos meus braços?” (Nican Mopohua, n. 118-119)

Esta religiosidade se expressa também na devoção aos santos com suas festas patronais, no amor ao Papa e aos demais Pastores, no amor à Igreja universal como grande família de Deus que nunca pode nem deve deixar sozinhos ou na miséria seus próprios filhos. Tudo isso forma o grande mosaico da religiosidade popular que é o precioso tesouro da Igreja católica na América Latina, e que ela deve proteger. Promover e, naquilo que for necessário, também purificar.

2. Continuidade com as outras Conferências

Esta V Conferência Geral se celebra em continuidade com as outras quatro que a precederam no Rio de Janeiro, Medellín, Puebla e Santo Domingo. Com o mesmo espírito que as animou, os Pastores querem dar agora um novo impulso à evangelização, a fim de que estes povos continuem crescendo e amadurecendo em sua fé, para ser luz do mundo e testemunhas de Jesus Cristo com a própria vida.

Depois da IV Conferência Geral, em Santo Domingo, muitas coisas mudaram na sociedade. A Igreja, que participa dos gozos e esperanças, das tristezas e alegrias de seus filhos, quer caminhar ao seu lado neste período de tantos desafios, para lhes infundir sempre esperança e consolo (cf. Gaudium et spes, 1).

No mundo de hoje se dá o fenômeno da globalização como um emaranhado de relações em nível planetário. Mesmo que em certos aspectos é uma conquista da grande família humana e um sinal de sua profunda aspiração à unidade, contudo traz consigo também o risco dos grandes monopólios e de converter o lucro no valor supremo. Como em todos os campos da atividade humana, a globalização deve se reger também pela ética, colocando tudo ao serviço da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.

Na América Latina e no Caribe, da mesma forma que em outras regiões, se evoluiu para a democracia, apesar de que há motivos de preocupação diante de formas de governo autoritárias ou sujeitas a certas ideologias que se achava que já estavam superadas, e que não correspondem à visão cristã do homem e da sociedade, como nos ensina a Doutrina Social da Igreja. Por outro lado, a economia liberal de alguns países latino-americanos deve ter presente a equidade, pois continuam aumentando os setores sociais que se encontram ameaçados cada vez mais por uma enorme pobreza ou, inclusive, espoliados dos próprios bens naturais.

Nas Comunidades eclesiais da América Latina é notável a maturidade na fé de muitos leigos e leigas ativos e comprometidos com o Senhor, junto com a presença de muitos abnegados catequistas, de tantos jovens, de novos movimentos eclesiais e de recentes Institutos de vida consagrada. Demonstram-se fundamentais muitas obras católicas educativas, assistenciais e hospitalares. Percebe-se, contudo, certo enfraquecimento da vida cristã no conjunto da sociedade e da própria pertença à Igreja católica devido ao secularismo, ao hedonismo, ao indiferentismo e ao proselitismo de numerosas seitas, de religiões animistas e de novas expressões pseudo-religiosas.

Tudo isso configura uma situação nova que será analisada aqui, em Aparecida. Diante da nova encruzilhada, os fiéis esperam desta V Conferência uma renovação e revitalização de sua fé em Cristo, nosso único Mestre e Salvador, que nos revelou a experiência única do Amor infinito de Deus Pai aos homens. Desta fonte poderão surgir novos caminhos e projetos pastorais criativos, que infundam uma firme esperança para viver de modo responsável e gozoso a fé e irradiá-la, assim, no próprio ambiente.

3. Discípulos e missionários

Esta Conferência Geral tem como tema: “Discípulos e missionários de Jesus Cristo, para que n’Ele nossos povos tenham vida. – Eu sou o caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6)”.

A Igreja tem a grade tarefa de custodiar e alimentar a fé do Povo de Deus, e recordar também aos fiéis deste Continente que, em virtude de seu batismo, estão chamados a ser discípulos e missionários de Jesus Cristo. Isto implica em segui-lo, viver em intimidade com Ele, imitar seu exemplo e dar testemunho. Todo batizado recebe de Cristo, como os Apóstolos, o mandato da missão: “Ide por todo o mundo e proclamai a Boa Nova a toda a criação. Quem crer e for batizado, se salvará” (Mc 16,15). Pois ser discípulos e missionários de Jesus Cristo e buscar a vida “n’Ele” supõe estar profundamente enraizados n’Ele.

O que Cristo nos dá realmente? Por que queremos ser discípulos de Cristo? Porque esperamos encontrar na comunhão com Ele a vida, a verdadeira vida digna deste nome, e por isso queremos dá-lo a conhecer aos demais, comunicar-lhes o dom que encontramos nEle. Mas, isso é mesmo assim? Estamos realmente convencidos de que Cristo é o caminho, a verdade e a vida?

Diante da prioridade da fé em Cristo e da vida “n’Ele”, formulada no título desta V Conferência, poderia surgir também outra questão: Esta prioridade, não poderia ser, por acaso, uma fuga em direção ao intimismo, ao individualismo religioso, a um abandono da realidade urgente dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da América Latina e do mundo, e uma fuga da realidade em direção a um mundo espiritual?

Como primeiro passo podemos responder a esta pergunta com outra: o que é esta “realidade”? O que é o real? São realidade só os bens materiais, os problemas sociais, econômicos e políticos? Aqui está precisamente o grande erro das tendências dominantes no último século, erro destrutivo, como demonstram os resultados tanto dos sistemas marxistas como inclusive dos capitalistas. Falsificam o conceito de realidade com a amputação da realidade fundante e por isso decisiva, que é Deus. Quem exclui Deus de seu horizonte falsifica o conceito de “realidade” e, em consequência, só pode terminar em caminhos equivocados e com receitas destrutivas.

A primeira afirmação fundamental é, portanto, a seguinte: só quem reconhece Deus, conhece a realidade e pode responder a ela de modo adequado e realmente humano. A verdade de esta tese resulta evidente diante do fracasso de todos os sistemas que colocam Deus entre parêntese.

Mas surge imediatamente outra pergunta: Quem conhece Deus? Como podemos conhecê-lo? Não podemos entrar aqui num complexo debate sobre esta questão fundamental. Para o cristão, o núcleo da resposta é simples: Só Deus conhece Deus, só seu Filho que é Deus de Deus, Deus verdadeiro, o conhece. E Ele, “que está no seio do Pai, o revelou” (Jo 1,18). Daí a importância única e insubstituível de Cristo para nós, para a humanidade. Se não conhecemos Deus em Cristo e com Cristo, toda a realidade se converte em um enigma indecifrável; não há caminho e, ao não haver caminho, não há vida nem verdade.

Deus é a realidade fundante, não um Deus só pensado ou hipotético, mas o Deus de rosto humano; é o Deus-conosco, o Deus do amor até a cruz. Quando o discípulo chega à compreensão deste amor de Cristo “até o extremo”, não pode deixar de responder a este amor se não é com um amor semelhante: “Senhor, te seguirei aonde quer que vás” (Lc 9,57).

Ainda podemos nos fazer outra pergunta: O que nos dá a fé neste Deus? A primeira resposta é: nos dá uma família universal de Deus na Igreja católica. A fé nos liberta do isolamento do eu, porque nos leva à comunhão: o encontro com Deus é, em si mesmo e como tal, encontro com os irmãos, um ato de convocação, de unificação, de responsabilidade em relação ao outro e aos demais. Neste sentido, a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2Cor 8,9).

Mas antes de enfrentar o que implica o realismo da fé no Deus feito homem, temos que aprofundar na pergunta: como conhecer realmente Cristo para poder segui-lo e viver com Ele, para encontrar a vida n´Ele e para comunicar esta vida aos demais, à sociedade e ao mundo? Sobretudo, Cristo se dá a conhecer em sua pessoa, em sua vida e em sua doutrina por meio da Palavra de Deus. Ao iniciar a nova etapa que a Igreja missionária da América Latina e do Caribe se dispõe a empreender, a partir desta V Conferência Geral em Aparecida, é condição indispensável o conhecimento profundo da Palavra de Deus.

Por isso, se há de educar o povo na leitura e meditação da Palavra de Deus: que ela se converta em seu alimento para que, por própria experiência, vejam que as palavras de Jesus são espírito e vida (cf. Jo 6,63). Do contrário, como vão anunciar uma mensagem cujo conteúdo e espírito não conhecem a fundo? Temos que fundamentar nosso compromisso missionário e toda a nossa vida na rocha da Palavra de Deus. Para isso, animo os Pastores a se esforçar em dá-la a conhecer.

Um grande meio para introduzir o Povo de Deus no mistério de Cristo é a catequese Nela se transmite de forma simples e substancial a mensagem de Cristo. Será conveniente, portanto, intensificar a catequese e a formação na fé, tanto de crianças como de jovens e adultos. A reflexão madura da fé é luz para o caminho da vida e força para ser testemunhas de Cristo. Para isto se dispõe de instrumentos muito valiosos como são o Catecismo da Igreja Católica e sua versão mais breve, o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica.

Neste campo não se deve limitar só às homilias, conferências, cursos de Bíblia ou teologia, mas se deve recorrer também aos meios de comunicação: imprensa, rádio e televisão, sites da Internet, fóruns e tantos outros sistemas para comunicar eficazmente a mensagem de Cristo a um grande número de pessoas.

Neste esforço por conhecer a mensagem de Cristo e fazê-lo guia da própria vida, se há de recordar que a evangelização vai unida sempre à promoção humana e à autêntica libertação cristã. “Amor a Deus e amor ao próximo se fundem entre si: no mais humilde encontramos Jesus mesmo e em Jesus encontramos Deus” (Deus caritas est, 15). Por isso mesmo, será também necessária uma catequese social e uma adequada formação na doutrina social da Igreja, sendo muito útil para isso o “Compêndio da Doutrina Social da Igreja”. A vida cristã não se expressa somente nas virtudes pessoais, mas também nas virtudes sociais e políticas.

O discípulo, fundamentado assim na rocha da Palavra de Deus, se sente impulsionado a levar a Boa Nova da salvação a seus irmãos. Discipulado e missão são como as duas caras de uma mesma moeda: quando o discípulo está enamorado de Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só Ele nos salva (cf. At 4,12). De fato, o discípulo sabe que sem Cristo não há luz, não há esperança, não há amor, não há futuro.

4. “Para que n’Ele tenham vida”

Os povos latino-americanos e caribenhos têm direito a uma vida plena, própria dos filhos de Deus, com umas condições mais humanas: livres das ameaças de fome e de toda forma de violência. Para estes povos, seus Pastores hão de fomentar uma cultura da vida que permita, como dizia meu predecessor Paulo VI, “passar da miséria da posse do necessário, à aquisição da cultura (...) à cooperação no bem comum (...) até o reconhecimento, por parte do homem, dos valores supremos e de Deus, que é a fonte e o fim deles” (Populorum progressio, 21).

Neste contexto me é grato recordar a Encíclica “Populorum progressio”, cujo quadragésimo aniversário recordamos neste ano. Este documento pontifício põe em evidência que o desenvolvimento autêntico há de ser integral, ou seja, orientado à promoção de todo o homem e de todos os homens (cf. n. 14), e convida a todos as suprimir as graves desigualdades sociais e as enormes diferenças no acesso aos bens. Estes povos desejam, sobretudo, a plenitude de vida que Cristo nos trouxe: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10). Com esta vida divina se desenvolve também em plenitude a existência humana, em sua dimensão pessoal, familiar, social e cultural.

Para formar o discípulo e sustentar o missionário em sua grande tarefa, a Igreja lhes oferece, além do Pão da Palavra, o Pão da Eucaristia. A esse respeito nos inspira e ilumina a página do Evangelho sobre os discípulos de Emaús. Quando eles se sentam à mesa e recebem de Jesus Cristo o pão abençoado e partido, se abrem os seus olhos, descobrem o rosto do Ressuscitado, sentem em seu coração que é verdade tudo o que Ele disse e fez, e que já iniciou a redenção do mundo. Cada domingo e cada Eucaristia é um encontro pessoal com Cristo. Ao escutar a Palavra divina, o coração arde porque é Ele quem a explica e proclama. Quando na Eucaristia se parte o pão, é Ele que é recebido pessoalmente. A Eucaristia é o alimento indispensável para a vida do discípulo e missionário de Cristo.

A Missa dominical, centro da vida cristã

Daí a necessidade de dar prioridade, nos programas pastorais, à valorização da Missa dominical. Temos que motivar os cristãos a que participem nela ativamente e, se é possível, melhor com a família. A participação dos pais com seus filhos na celebração eucarística dominical é uma pedagogia eficaz para comunicar a fé e um estreito vínculo que mantém a unidade entre eles. O domingo tem significado, ao longo da história da Igreja, o momento privilegiado do encontro das comunidades com o Senhor ressuscitado.

É necessário que os cristãos experimentem que não seguem a um personagem da história passada, mas ao Cristo vivo, presente no hoje e no agora de suas vidas. Ele é o Vivente que caminha a nosso lado, nos desvelando o sentido dos acontecimentos, da dor e da morte, da alegria e da festa, entrando em nossas casas e permanecendo nelas, nos alimentando com o Pão que dá a vida. Por isso a celebração dominical da Eucaristia há de ser o centro da vida cristã.

O encontro com Cristo na Eucaristia suscita o compromisso da evangelização e o impulso à solidariedade; desperta no cristão o forte desejo de anunciar o Evangelho e testemunhá-lo na sociedade para que seja mais justa e humana. Da Eucaristia brotou ao longo dos séculos um imenso caudal de caridade, de participação nas dificuldades dos demais, de amor e de justiça. Só da Eucaristia brotará a civilização do amor, que transformará a América Latina e o Caribe para que, além de ser o Continente da Esperança, seja também o Continente do Amor!

Os problemas sociais e políticos

Chegando a este ponto podemos nos perguntar: Como a Igreja pode contribuir para a solução dos urgentes problemas sociais e políticos, e responder ao grande desafio da pobreza e da miséria? Os problemas da América Latina e do Caribe, como também do mundo de hoje, são múltiplos e complexos, e não se podem enfrentar com programas gerais. Entretanto, a questão fundamental sobre o modo como a Igreja, iluminada pela fé em Cristo, deve reagir diante dos desafios, concerne a todos nós. Neste contexto é inevitável falar do problema das estruturas, sobretudo das que criam injustiça. Na realidade, as estruturas justas são uma condição sem a qual não é possível uma ordem justa na sociedade. Mas, como nascem? Como funcionam? Tanto o capitalismo como o marxismo prometeram encontrar o caminho para a criação de estruturas justas e afirmaram que estas, uma vez estabelecidas, funcionariam por si mesmas; afirmaram que não só não teriam tido necessidade de uma moralidade individual precedente, mas que elas fomentariam a moralidade comum. E esta promessa ideológica se demonstrou como falsa. Os fatos evidenciaram isso. O sistema marxista, onde governou, não só deixou uma triste herança de destruições econômicas e ecológicas, mas também uma dolorosa destruição do espírito. E vemos o mesmo também no ocidente, onde cresce constantemente a distância entre pobres e ricos e se produz uma inquietante degradação da dignidade pessoal com a droga, o álcool e as sutis ilusões de felicidade.

As estruturas justas são, como disse, uma condição indispensável para uma sociedade justa, mas não nascem nem funcionam sem um consenso moral da sociedade, sobre os valores fundamentais e sobre a necessidade de viver estes valores com as necessárias renúncias, inclusive em contra do interesse pessoal.

Onde Deus está ausente – o deus do rosto humano de Jesus Cristo – estes valores não se mostram com toda a sua força, nem se produz um consenso sobre eles. Não quero dizer que os não-crentes não possam viver uma moralidade elevada e exemplar; digo somente que a sociedade na que Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo a pauta destes valores, mesmo que contra os próprios interesses.

Por outro lado, as estruturas justas devem ser buscadas e elaboradas à luz dos valores fundamentais, com todo o empenho da razão política, econômica e social. São uma questão da recta ratio e não provêm de ideologias nem de suas promessas. Certamente existe um tesouro de experiências políticas e de conhecimento sobre os problemas sociais e econômicos, que evidenciam elementos fundamentais de um estado justo e d caminhos que se devem evitar. Mas em situações culturais e políticas diversas, e na mudança progressiva das tecnologias e da realidade histórica mundial, deve-se buscar, de maneira racional, as respostas adequadas e deve-se criar – com os compromissos indispensáveis – o consenso sobre as estruturas que hão de ser estabelecidas.

Este trabalho político não é competência imediata da Igreja. O respeito a uma sadia laicidade – inclusive na pluralidade das posições políticas – é essencial na tradição cristã autêntica. Se a Igreja começasse a se transformar diretamente em sujeito político, não faria mais pelos pobres e pela justiça, mas, pelo contrário, faria menos, porque perderia sua independência e sua autoridade moral, se identificando com uma única via política e com posições parciais questionáveis. A Igreja é advogada da justiça e dos pobres, precisamente ao não se identificar com os políticos nem com os interesses partidários. Só sendo independente pode ensinar os grandes critérios e os valores perenes, orientar as consciências e oferecer uma opção de vida que vai mais além do âmbito político. Formar as consciências, ser advogada da justiça e da verdade, educar nas virtudes individuais e políticas, é a vocação fundamental da Igreja neste setor. E os leigos católicos devem ser conscientes de sua responsabilidade na vida pública; devem estar presentes na formação dos consensos necessários e na oposição contra as injustiças.

As estruturas justas jamais serão completas de modo definitivo; pela constante evolução da história, devem ser sempre renovadas e atualizadas; devem estar animadas sempre por um “ethos” político e humano, por cuja presença e eficiência se deve trabalhar sempre. Em outras palavras, a presença de Deus, a amizade com o Filho de Deus encarnado, a luz da sua Palavra, são sempre condições fundamentais para a presença e eficiência da justiça e do amor em nossas sociedades.

Por se tratar de um Continente de batizados, convém destacar a notável ausência, no âmbito político, comunicativo e universitário, de vozes e iniciativas de líderes católicos de forte personalidade e de vocação abnegada, que sejam coerentes com as convicções éticas e religiosas. Os movimentos eclesiais têm aqui um amplo campo para recordar aos leigos sua responsabilidade e sua missão de levar a luz do Evangelho à vida pública, cultural, econômica e política.

5. Outro campos prioritários

Para levar a cabo a renovação da Igreja a vós confiada nestas terras, gostaria de deter-me convosco sobre alguns campos que considero prioritários nesta nova etapa.

A família

A família, “patrimônio da humanidade”, constitui um dos tesouros mais importantes dos povos latino-americanos. Ela tem sido e é escola de fé, palestra de valores humanos e cívicos, lugar no qual a vida humana nasce e se acolhe generosa e responsavelmente. Contudo, na atualidade sofre situações adversas provocadas pelo secularismo e o relativismo ético, pelos diversos fluxos migratórios internos e externos, pela pobreza, pela instabilidade social e por legislações civis contrárias ao matrimônio que, ao favorecer os anticoncepcionais e o aborto, ameaçam o futuro dos povos.

Em algumas famílias da América Latina persiste ainda, infelizmente, uma mentalidade machista, ignorando a novidade do cristianismo que reconhece e proclama a igual dignidade e responsabilidade da mulher em relação ao homem.

A família é insubstituível para a serenidade pessoal e para a educação dos filhos. As mães que querem se dedicar plenamente à educação dos seus filhos e ao serviço da família devem gozar das condições necessárias para isso, e para tal, têm o direito de contar com o apoio do Estado. De fato, o papel da mãe é fundamental para o futuro da sociedade.

O pai, por sua parte, tem o dever de ser verdadeiramente pai, que exerce sua indispensável responsabilidade e colaboração na educação de seus filhos. Os filhos, para seu crescimento integral, têm o direito de poder contar com o pai e a mãe, para que cuidem deles e os acompanhem rumo à plenitude de sua vida. É necessária, pois, uma pastoral familiar intensa e vigorosa. É indispensável também promover políticas familiares autênticas que respondam aos direitos da família como sujeito social imprescindível. A família forma parte do bem dos povos e da humanidade inteira.

Os primeiros promotores do discipulado e da missão são aqueles que foram chamados «para estar com Jesus e ser enviados a pregar» (cf. Mc 3,14), ou seja, os sacerdotes. Eles devem receber de modo preferencial a atenção e o cuidado paterno dos seus Bispos, pois são os primeiros agentes de uma autentica renovação da vida cristã no povo de Deus. A eles quero dirigir uma palavra de afeto paterno desejando «que o Senhor seja parte da sua herança e do seu cálice» (cf. Sl 16,5). Se o sacerdote fizer de Deus o fundamento e o centro de sua vida, então experimentará a alegria e a fecundidade da sua vocação. O sacerdote deve ser antes de tudo um “homem de Deus” (1Tim 6,11); um homem que conhece a Deus “em primeira mão”, que cultiva uma profunda amizade pessoal com Jesus, que compartilha os “sentimentos de Jesus” (cf. Fil 2,5). Somente assim o sacerdote será capaz de levar Deus - o Deus encarnado em Jesus Cristo - aos homens, e de ser representante do seu amor. Para cumprir a sua altíssima missão deve possuir uma sólida estrutura espiritual e viver toda a existência animado pela fé, a esperança e a caridade. Tem de ser, como Jesus, um homem que procure, através da oração, o rosto e a vontade de Deus, cultivando igualmente sua preparação cultural e intelectual.

Queridos sacerdotes deste Continente e quantos que, como missionários, nele viestes a trabalhar: o Papa acompanha vossa atividade pastoral e deseja que estejam repletos de consolações e de esperança, e reza por vocês.

Religiosos, religiosas e consagrados

Quero dirigir-me também aos religiosos, às religiosas e aos leigos e leigas consagrados. A sociedade latino-americana e caribenha tem necessidade do vosso testemunho: em um mundo que tantas vezes busca, sobretudo, o bem-estar, a riqueza e o prazer como finalidade da vida, e que exalta a liberdade prescindindo da verdade do homem criado por Deus, vocês são testemunhas de que existe outra forma de viver com sentido; lembrem aos vossos irmãos e irmãs que o Reino de Deus chegou; que a justiça e a verdade são possíveis se nos abrimos à presença amorosa de Deus nosso Pai, de Cristo nosso irmão e Senhor, do Espírito Santo nosso Consolador. Com generosidade e até ao heroísmo, continuai trabalhando para que na sociedade reine o amor, a justiça, a bondade, o serviço, a solidariedade conforme o carisma dos vossos fundadores. Abraçai com profunda alegria vossa consagração, que é instrumento de santificação para vocês e de redenção para vossos irmãos.

A Igreja da América Latina vos agradece pelo grande trabalho que vindes realizando ao longo dos séculos pelo Evangelho de Cristo a favor de vossos irmãos, principalmente pelos mais pobres e marginalizados. Convido a todos para que colaborem sempre com os Bispos, trabalhando unidos a eles que são os responsáveis pela pastoral. Exorto-vos também a uma obediência sincera à autoridade da Igreja. Não tenham outro ideal que não seja a santidade conforme os ensinamentos de vossos fundadores.

Os leigos

Nesta hora em que a Igreja deste Continente se entrega plenamente à sua vocação missionária, lembro aos leigos que são também Igreja, assembléia convocada por Cristo para levar seu testemunho ao mundo inteiro. Todos os homens e mulheres batizados devem tomar consciência de que foram configurados com Cristo Sacerdote, Profeta e Pastor, através do sacerdócio comum do Povo de Deus. Devem sentir-se co-responsáveis na construção da sociedade segundo os critérios do Evangelho, com entusiasmo e audácia, em comunhão com os seus Pastores.

São muitos os fiéis que pertencem a movimentos eclesiais, nos quais podemos ver os sinais da multiforme presença e ação santificadora do Espírito Santo na Igreja e na sociedade atual. Eles são chamados para levar ao mundo o testemunho de Jesus Cristo e ser fermento do amor de Deus na sociedade.

Os Jovens e a pastoral vocacional

Na América Latina a maioria da população está formada por jovens. A este respeito, devemos recordar-lhes que sua vocação é ser amigos de Cristo, discípulos, sentinelas do amanhã, como costumava dizer o meu Predecessor João Paulo II. Os jovens não temem o sacrifício, mas, sim, uma vida sem sentido. São sensíveis à chamada de Cristo que os convida a segui-Lo. Podem responder a essa chamada como sacerdotes, como consagrados e consagradas, ou ainda como pais e mães de família, dedicados totalmente a servir aos seus irmãos com todo o seu tempo, sua capacidade de entrega e com a vida inteira. Os jovens encaram a existência como uma constante descoberta, não se limitando às modas e tendências comuns, indo mais além com uma curiosidade radical acerca do sentido da vida, e de Deus Pai-Criador e Deus-Filho Redentor no seio da família humana. Eles devem-se comprometer por uma constante renovação do mundo à luz de Deus. Mais ainda: cabe-lhes a tarefa de opor-se às fáceis ilusões da felicidade imediata e dos paraísos enganosos da droga, do prazer, do álcool, junto com todas as formas de violência.

6. Fica conosco

Os trabalhos desta V Conferência Geral nos levam a fazer nossa a súplica dos discípulos de Emaús: “Fica conosco, porque entardece e o dia já termina” (Lc 24,29).

Fica conosco, Senhor, acompanha-nos mesmo que nem sempre tenhamos sabido te reconhecer. Fica conosco, porque em torno a nós vão se fazendo mais densas as sombras, e tu és a luz; em nossos corações se insinua a desesperança, e tu os fazes arder com a certeza da Páscoa. Estamos cansados do caminho, mas tu nos confortas na fração do pão para anunciar aos nossos irmãos que, em verdade, tu ressuscitaste e que nos deste a missão de ser testemunhas da tua ressurreição.

Fica conosco, Senhor, quando em torno a nossa fé católica surgem as névoas da dúvida, do cansaço ou da dificuldade: tu, que és a Verdade mesma como Revelador do Pai, ilumina nossas mentes com tua Palavra; ajuda-nos a sentir a beleza de crer em ti.

Fica com nossas famílias, ilumina-as em suas dúvidas, sustente-as em suas dificuldades, consola-as em seus sofrimentos e na fatiga de cada dia, quando em torno a elas se acumulam as sombras que ameaçam sua unidade e sua natureza. Tu que és a Vida, fica em nossos lares, para que continuem sendo ninhos onde nasça a vida humana abundante e generosamente, onde se acolha, se ame, se respeite a vida desde a sua concepção até o seu término natural.

Fica, Senhor, com aqueles que em nossas sociedades são mais vulneráveis; fica com os pobres e humildes, com os indígenas e afro-americanos, que nem sempre têm encontrado espaços e apoio para expressar a riqueza de sua cultura e a sabedoria de sua identidade. Fica, Senhor, com nossas crianças e com nossos jovens, que são a esperança e a riqueza de nosso Continente, proteja-os de tantas insídias que atentam contra sua inocência e contra suas legítimas esperanças. Ó, bom Pastor, fica com nossos anciãos e com nossos doentes. Fortalece a todos em sua fé para que sejam teus discípulos e missionários!

7. Conclusão

Ao concluir minha permanência entre vós, desejo invocar a proteção da Mãe de Deus e Mãe da Igreja sobre vossas pessoas e sobre toda América Latina e o Caribe. Imploro de modo especial a Nossa Senhora – sob a avocação de Guadalupe, Padroeira da América, e de Aparecida, Padroeira do Brasil – que os acompanhe em vosso belo e exigente trabalho pastoral. A ela confio o Povo de Deus nesta etapa do terceiro milênio cristão. A ela peço também que guie os trabalhos e reflexões desta Conferência Geral, e que abençoe com abundantes dons os queridos povos deste Continente.