Uma serena atenção: as obras de misericórdia espirituais

As obras de misericórdia espirituais atendem à fome e à sede, à nudez e ao desamparo, à doença e ao cativeiro que o coração humano experimenta em tantas formas diversas.

A Igreja tem a sabedoria de uma boa mãe, que sabe o que seus filhos necessitam para crescerem sãos e fortes, no corpo e no espírito. Com as obras de misericórdia, convida-nos a descobrir sempre de novo que tanto o corpo quanto a alma de nossos irmãos os homens precisam de cuidados, e que Deus confia a cada um de nós essa guarda atenta. “O objeto da misericórdia é a própria vida humana em sua totalidade. Nossa vida enquanto ‘carne’ está faminta e sedenta, necessitada de roupas, casa e visitas, assim como de um enterro digno, coisa que ninguém pode dar-se a si mesmo (…). Nossa vida enquanto ‘espírito’ precisa ser educada, corrigida, animada, consolada (…). Necessitamos de que outros nos aconselhem, nos perdoem, nos suportem e rezem por nós”[1].

Mesmo com o peso que levamos em nossas costas, Deus espera que nosso coração se comova como o seu, que não se insensibilize perante as necessidades dos outros.

Vamos considerar agora as obras espirituais, que atendem à fome e à sede, à nudez e ao desamparo, à doença e ao cativeiro que o coração humano experimenta em tantas formas diversas: formas de pobreza espiritual que afeta a todos nós, e que descobrimos também, se não ficamos desatentos, ao nosso redor[2]. Mesmo com o peso que levamos em nossas costas, Deus espera que nosso coração se comova como o seu, que não se insensibilize perante as necessidades dos outros. “No meio de tanto egoísmo, de tanta indiferença – cada um atrás das suas coisas! –, lembro-me daqueles burrinhos de madeira, fortes, robustos, trotando sobre uma mesa... – Um deles perdeu uma pata. Mas continuava em frente, porque se apoiava nos outros.”[3].

A misericórdia de todos os dias

São Josemaria recordava em uma ocasião sua alegre experiência de generosidade cristã, confirmada ao longo dos anos: “conheço milhares de casos de estudantes (...) que renunciaram ao seu pequeno mundo privado, dando-se aos outros mediante um trabalho profissional que procuram fazer com perfeição humana, em obras de ensino, de assistência, sociais, etc., com espírito sempre jovem e cheio de alegria”[4]. Onde há um cristão que se reconhece “como marcado a fogo por essa missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar”, encontramos alguém que se revela como “enfermeira no espírito, professor no espírito, político no espírito..., ou seja, pessoas que decidiram, no mais íntimo de si mesmas, estar com os outros e ser para os outros. Mas, se uma pessoa coloca a tarefa dum lado e a vida privada do outro, tudo se torna cinzento e viverá continuamente à procura de reconhecimentos ou defendendo as suas próprias exigências”[5]. “Se todos nós somos homens e todos filhos de Deus, não podemos conceber a nossa vida como a trabalhosa preparação de um brilhante curriculum, de uma luzida carreira.”[6] É lógico que sonhemos com os horizontes que se abrem diante de nós no nosso trabalho; mas esse sonho, se não quiser ser delírio – “vaidade das vaidades” (Ec 1,2) –, deve estar inspirado pela paixão de iluminar as inteligências, pacificar as tensões, confortar os corações.

Todos influímos de um modo ou de outro na cultura e na opinião pública: não só os escritores, os professores ou os profissionais da comunicação. Cada um pode fazer ao seu modo muita coisa por “ensinar o que não sabe”, “dar bom conselho ao que precisa” e “corrigir o que erra”: àqueles que são vítimas, mesmo sem o saberem, da superficialidade ou das ideologias; àqueles que têm sede de saber, de beber das fontes da sabedoria humana e divina; àqueles que não conhecem a Cristo, “nem viram a beleza de seu rosto, nem perceberam a maravilha da sua doutrina”[7]. O esforço por pensar a fé, de modo que se perceba o resplendor da verdade; a disposição de complicar a vida organizando meios de formação nos contextos mais diversos; o desejo de dar forma cristã à própria profissão, purificando-a de abusos e abrindo-lhe horizontes; o interesse dos professores por fazer seus alunos crescerem; a iniciativa para orientar com nossa experiência aqueles que abrem passagem no mundo profissional; a disposição de ajudar ou aconselhar os colegas em suas dificuldades; o apoio aos jovens que não se decidem a formar uma família por causa da precariedade das suas condições de trabalho; a nobreza e a valentia de “corrigir o que erra”... Essas, e outras atitudes que vão muito além de éticas minimalistas, dão forma à misericórdia corriqueira que Deus pede aos cristãos da rua.

o terreno habitual da misericórdia é um dia a dia do trabalho guiado pela paixão de ajudar: o que mais posso fazer? A quem mais posso envolver?

Mesmo que, sem dúvida, convenha dar vida a projetos onde tenhamos possibilidade de dar uma mão, o terreno habitual da misericórdia é um dia a dia do trabalho guiado pela paixão de ajudar: o que mais posso fazer? A quem mais posso envolver? Tudo isso é misericórdia em ato, sem horários, sem cálculos: “uma misericórdia dinâmica, não como um substantivo coisificado e definido, nem como adjetivo que adorna um pouco a vida, mas sim como verbo – misericordiar e ser misericordiados[8].

Ocultar a debilidade do outro

Esse binômio – misericordiar e ser misericordiados – faz eco à bem-aventurança mais específica deste ano jubilar: “bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mt 5,7): a misericórdia encontrará neles o seu caminho, porque ao dá-la eles a receberão do alto. O gênio de Shakespeare o sintetizou assim: “a misericórdia não se impõe, cai como a suave chuva do céu sobre a terra em baixo. É duplamente abençoada: abençoa quem a concede e quem a recebe;”[9].

Portanto, o Senhor não promete aos misericordiosos somente clemência e compreensão ao final de seus dias, mas também uma medida generosa de bens – o cêntuplo por um (Mt 19,29) – para esta vida: o misericordioso percebe mais intensamente como Deus o perdoa e compreende; alegra-se por sua vez perdoando e compreendendo, mesmo que doa; e experimenta também a alegria de ver como a misericórdia de Deus se contagia, através de si, aos demais. “Pois a loucura de Deus é mais sábia do que os homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens” (1 Co 1,25). Quando afogamos o mal em abundância de bem; quando evitamos que a dureza dos outros endureça o nosso coração, e não respondemos à frialdade com mais frialdade; quando nos recusamos a despejar as nossas dificuldades sobre aqueles que nos rodeiam; quando nos esforçamos para superar a nossa suscetibilidade e o nosso amor próprio, então lutamos “as batalhas de Deus (...). Não há melhor remédio que levar a sério esta formosíssima guerra de amor, se realmente queremos conseguir a paz interior e a serenidade de Deus para a Igreja e para as almas”[10] .

Outra das obras de misericórdia espirituais consiste em “sofrer com paciência as fraquezas do próximo”. Não se trata só de não pôr o outro em evidência, de não apontá-lo com o dedo: a misericórdia oculta a debilidade do outro, como os filhos de Noé[11], mesmo que ao ocultá-la se note o “odor” de seus defeitos. Uma misericórdia distante não seria misericórdia. O “odor de ovelha”[12] – porque todos na Igreja somos “ovelha e pastor”[13] – não costuma ser agradável, mas expor-se a ele é um sacrifício que, realizado sem espalhafato, sem que se note, tem um aroma muito agradável a Deus: o bonus odor Christi[14]. “Quando jejuares, perfuma tua cabeça e lava o rosto, para que os homens não saibam que jejuas, mas teu Pai, que está no escondido” (Mt 6,17-18)

A misericórdia inverte uma fácil tendência a sermos exigentes com os outros, e transigentes conosco mesmos.

A misericórdia inverte uma fácil tendência a sermos exigentes com os outros, e transigentes conosco mesmos. Descobrimos então com frequência que o que nos parecia um defeito era simplesmente uma etiqueta que havíamos posto no outro, talvez por um episódio isolado, ou por uma impressão a que demos importância demais; um “juízo sumário” que cristalizou e que nos impede de vê-lo tal como é, porque percebemos só esse lado negativo, esse traço inchado pelo nosso amor próprio. A misericórdia de Deus nos ajuda a evitar e, em seu caso, a eliminar esses pareceres severos, dos quais, às vezes, não somos muito conscientes. Também aqui rege aquela sentença tão sábia de Tertuliano de que “deixam de odiar os que deixam de ignorar, desinunt odisse qui desinunt ignorare”[15]. Um desafio da misericórdia corriqueira, pois, é conhecer melhor os que nos rodeiam e evitar etiquetá-los: pais, filhos, irmãos, vizinhos, colegas… Além disso, quando compreendemos uma pessoa, quando não perdemos a esperança nela, ajudamo-la a crescer, e, ao contrário, a fixação nas insuficiências produz uma tensão, um esgotamento no qual dificilmente brota o melhor de cada um. Toda a nossa relação com os outros, especialmente na família, deve ser “um ‘pastoreio’ misericordioso”: sem paternalismos, “cada um, com cuidado, pinta e escreve a vida do outro”[16]

Faz falta também misericórdia para aceitar sem ressentimento a dureza com a qual os outros às vezes podem tratar-nos. Não é fácil amar quando se recebe coices ou indiferença, mas “se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa?” (Mt 5,47). O ar cristão não se caracteriza só pela mútua compreensão, mas também pela disposição a nos reconciliarmos quando falhamos ou quando nos tratam com desdém. A atitude sincera de “perdoar as ofensas” é o único caminho para quebrar as espirais de incompreensão que vemos alçar-se ao nosso redor e que são, quase sempre, espirais de desconhecimento mútuo. Não é essa uma atitude idealista para ingênuos que não estão em contato com a mesquinhez ou com o cinismo, mas “força de Deus” (1 Co 1, 19): uma brisa suave, capaz de derrubar as estruturas mais imponentes.

Enviados a consolar

“Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e Deus de toda consolação, que nos consola em todas as nossas tribulações, para que também nós sejamos capazes de consolar os que se encontram em qualquer tribulação, mediante o consolo com que nós mesmos somos consolados por Deus” (2 Co 1,3-4). O cristão sofre como os outros homens, sofre, às vezes, até mais pelas incompreensões ou pelas dificuldades que lhe acarreta a sua fidelidade a Deus[17]; mas, ao mesmo tempo, os sofrimentos se tornam mais leves, porque ele tem o consolo de seu Pai. “Esta é a tua segurança, o ancoradouro onde lançar a âncora, aconteça o que acontecer na superfície deste mar da vida. E encontrarás alegria, fortaleza, otimismo... vitória!”[18] O consolo que Deus nos dá nos torna capazes de consolar; envia-nos ao mundo para consolar, porque “nossa tristeza infinita só se cura com um infinito amor”[19].

Uma das nossas alegrias no céu será descobrir o bem que fez a tantas pessoas uma brevíssima oração no meio do tumulto do trânsito ou do transporte público

Para “consolar o que está triste” é necessário aprender a ler as necessidades dos outros. Algumas pessoas ficam tristes porque experimentam a “amargura que provém da solidão ou da indiferença”[20]; outras, porque estão sob muita tensão e precisam descansar: será o caso de acompanhá-las e, às vezes, ensiná-las a descansar, porque nunca aprenderam essa arte. Um bom filho de Deus procura imitar a tarefa discreta do verdadeiro Consolador, “descanso no trabalho, alívio no calor, consolo no pranto”[21]: cuidar dos outros, sem que percebam que estamos dedicando tempo a eles, sem que tenham a impressão de que lhes proporcionamos audiência, ou de que os administramos. “Estamos falando de uma atitude do coração, que vive tudo com serena atenção, que sabe estar plenamente presente perante alguém sem ficar pensando no virá depois, que se entrega a cada momento como um dom divino que deve ser plenamente vivido”[22] Um filho de Deus caminha pela existência com a convicção profunda de que “cada pessoa é digna de nossa entrega”[23]: o sorriso, a disposição de ajudar, o interesse verdadeiro pelos outros, também por aqueles que nem sequer conhecemos, podem mudar seu dia, e, às vezes, a sua vida.

Com todos, conhecidos e desconhecidos, a nossa misericórdia deve encontrar um “canal amplo, manso e seguro”[24] na oração: “Interceder, pedir em favor de outro, é, desde Abraão, próprio de um coração conforme a misericórdia de Deus”[25]. Por isso a Igreja nos anima a “rezar a Deus pelos vivos e defuntos”. Uma das nossas alegrias no céu será descobrir o bem que fez a tantas pessoas uma brevíssima oração no meio do tumulto do trânsito ou do transporte público, às vezes, talvez como resposta misericordiosa a um gesto pouco amável; a esperança que Deus inspirou, por nossa intercessão, àqueles que sofriam por qualquer motivo; o consolo que receberam vivos e defuntos pela nossa lembrança – memento – na Santa Missa, metidos na oração de Jesus ao Pai, no Espírito Santo.

Acabamos assim este breve percurso pelas obras de misericórdia, que são realidades “infinitas, cada uma com o seu cunho pessoal, com a história de cada rosto. Não são apenas as sete corporais e as sete espirituais em geral. Ou melhor: estas, assim enumeradas, são como matérias-primas – as da própria vida – que, quando as mãos da misericórdia as tocam e moldam, se transformam, cada uma delas, num trabalho artesanal. Uma obra que se multiplica como o pão nos cestos, que cresce desmedidamente como a semente de mostarda”[26].

Carlos Ayxelá


[1] Francisco, 3ª meditação no Jubileu dos sacerdotes, 2-VI-2016.

[2] O Compêndio do Catecismo da Igreja Católica as enumera assim: ensinar ao que não sabe; dar bom conselho ao que precisa, corrigir o que erra; perdoar as injúrias; consolar o triste; suportar com paciência os defeitos dos outros; rogar a Deus pelos vivos e defuntos.

[3] São Josemaria, Forja, 563.

[4] São Josemaria, Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá, 75.

[5] Francisco, Ex. Ap. Evangelii gaudium (24-XI-2013), 273.

[6] São Josemaria, Amigos de Deus, 76.

[7] São Josemaria, É Cristo que passa, 179.

[8] Francisco, 1ª meditação no Jubileu dos sacerdotes, 2-VI-2016.

[9] W. Shakespeare, O mercador de Veneza, Ato IV, Cena I. Cfr. Francisco, Mensagem para a 50ª Jornada mundial das comunicações sociais, 24-I-2016.

[10] São Josemaria, Notas tomadas de uma meditação, II-1972, citado em É Cristo que passa, Edição crítico-histórica preparada por Antonio Aranda, Rialp 2013, 8ª ed.

[11] Cfr. Gn 9,22-23.

[12] Francisco, Homilia, 28-III-2013.

[13] Cfr. Javier Echevarría, Carta Pastoral, 1-VIII-2007.

[14] Cfr. 2 Cor 2,15.

[15] Tertuliano, ad Nationes, 1, 1. Também Santo Agostinho aborda esta questão em In Evangelium Ioannis Tractatus, 89 y 90.

[16] Francisco, Ex. Ap. Amoris laetitia (19-III-2016), 322.

[17] Os salmos refletem com frequência esta dificuldade. Cfr. p. ex. Sal 42 (41),10-12; 44 (43),10-26; 73 (72).

[18] Via Sacra, VII estação, 2.

[19] Francisco, Evangelii gaudium, 265.

[20] São Josemaria, Discurso no Centro ELIS, por ocasião de sua inauguração, 21-XI-1965 (em Josemaria Escrivá de Balaguer e a universidade, Pamplona, Eunsa 1993, 84).

[21] Missal Romano, Pentecostes, Sequência Veni Sancte Spiritus

[22] Francisco, Enc. Laudato si’ (24-V-2015), 226

[23] Francisco, Evangelii gaudium, 274.

[24] Amigos de Deus, 306.

[25] Catecismo da Igreja Católica, 2635.

[26] Francisco, 3ª meditação no Jubileu dos sacerdotes, 2-VI-2016. Cfr. Mt 13,31-32; 14,19-20.