Uma nova visão do trabalho

"O Céu e a terra não se unem lá longe, sobre a linha do horizonte, mas no coração dos filhos de Deus, que se comprometem na incomparável audácia de procurar Cristo presente nas realidades terrenas."

Há exatamente cem anos, nascia numa pequena cidade da Espanha o bem-aventurado Josemaría Escrivá. Um retrato fiel da fecundidade da sua passagem pela Terra é o pensamento com que começa o seu livro Caminho: "Que a tua vida não seja uma vida estéril. Sê útil. Deixa rasto. Ilumina com o resplendor da tua fé e do teu amor(...) E incendeia todos os caminhos da terra com o fogo de Cristo que levas no coração."

Era um homem completamente enamorado de Cristo, e o amor não murcha nem morre. Por isso, o centenário que hoje nos dispomos a comemorar não se apresenta como uma simples memória do passado. Se cedêssemos à tentação meramente comemorativa, teríamos deitado a perder a lição de humildade do fundador do Opus Dei, que evitava os louvores e trabalhava duramente, mas sem fazer barulho.

Ao chegar ao 50 aniversário da sua ordenação sacerdotal, quando era considerado por todos um mestre de vida interior, dizia que se sentia "como uma criança que balbucia". Também dizia às vezes que quando se recebe uma carta joga-se fora o envelope e toda a atenção se volta para a mensagem: ele tinha a convicção de ser o envelope; o importante era a mensagem, o espírito de santificação da vida cotidiana que o Senhor lhe tinha confiado.

O centenário quer ser um olhar para o futuro: não é nostalgia do passado, mas projeto, esperança, desejo sincero de progredir no amor a Deus e ao próximo.

Estamos nos umbrais de um novo século; os tempos requerem abertura de mente, prontidão para acolher desafios inéditos, e convidam-nos, como o Santo Padre escreveu na Carta Apostólica Novo millennio ineunte, a "lembrar com gratidão o passado, a viver com paixão o presente, a abrir-nos com confiança para o futuro".

A mensagem entregue à Igreja por meio do fundador do Opus Dei tem um dinamismo interno tão evidente que, como sublinha o decreto com que o Papa proclamou as virtudes heróicas do bem-aventurado Josemaría Escrivá, está "destinada a perdurar de modo inalterável, por cima das vicissitudes históricas, como fonte inesgotável de luz espiritual". Quando nos aprofundamos nos ensinamentos do bem-aventurado Josemaría Escrivá, essa luz espiritual mostra que ninguém está excluído da chamada do Senhor, e em consequência nos comunica a certeza de que — a imagem é dele — o céu e a terra não só se unem lá longe, sobre a linha do horizonte, mas no coração dos filhos de Deus, que se comprometem na incomparável audácia de procurar Cristo presente nas realidades terrenas.

O bem-aventurado Josemaría Escrivá pôs-se inteiramente a serviço da missão que havia recebido de Deus: tudo o que, em sua vida, se referisse à sua pessoa foi deixado de lado. Pode-se dizer que viveu exclusivamente em função da missão de dar a vida e consolidar a instituição que era necessária para a difusão daquela mensagem, para recordar aos cristãos que vivem no meio do mundo que Deus os chama em e por meio das ocupações da vida cotidiana. "Há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir", escreveu (Questões Atuais do Cristianismo, n. 114). E consumiu todas as suas energias a serviço desse ideal ao mesmo tempo grandioso e normalíssimo. É por isso que tantos cristãos têm podido aprender dele a descobrir, na dimensão sobrenatural da existência comum — precisamente onde outros não vêem senão cacos de garrafa — ouro puro, esmeraldas, rubis. Deste modo, a rotina, a obviedade, a monotonia cotidiana ficam transfiguradas.

A fecundidade da vida de monsenhor Escrivá é fruto da entrega total ao papel eclesial que Deus lhe confiou. É esta uma constante da lógica sobrenatural, que exige deixar a Deus todo o espaço, ser humilde. Não com a humildade de quem se encolhe, mas com aquela que leva a dar-se inteiramente, a não reter para si nem sequer um pequeno retalho de possibilidades vitais. Por isso, hoje desejaria frisar — em primeiro lugar para mim mesmo — que para desenvolver todas as potencialidades contidas na mensagem de monsenhor Escrivá temos de estar dispostos a entregar-nos como ele se entregou.

Este é um bom momento para entendermos toda a força contida numa idéia: a idéia de que o trabalho é serviço.

"Serviço — escreveu o fundador do Opus Dei — como gosto desta palavra! Servir ao meu Rei e, por Ele, a todos os que foram redimidos pelo seu sangue. Se nós, cristãos, soubéssemos servir!" (É Cristo que passa, n. 182). Servir significa dar-se a si mesmo, e é a garantia de um amor operante, que prefere os atos às palavras. A solidariedade nasce daí, e também essas virtudes domésticas de que a autêntica caridade se reveste: o sorriso, a paciência, a arte de respeitar os gostos dos outros, de saber calar, de esperar.

O pequeno e o grande encontram-se no espírito de serviço, que funde a humildade com a caridade. Na alma do cristão, não há lugar para a mediocridade, se este aprende a contemplar o exemplo eloquente de Cristo: "Fez tudo bem feito" (Mc, 7, 37), comentavam atônitos os que o conheciam, já desde a época da infância e nos anos de trabalho em Nazaré. Participar na epopéia da Redenção, com efeito, significa conjugar a maior ambição — a procura da santidade — com o cuidado das pequenas coisas.

Mas para servir é preciso ter renunciado verdadeiramente à procura de si mesmo, da própria excelência, do êxito ("ninguém pode servir a dois senhores", Mt, 6, 24), para procurar somente a glória de Deus.

Seguir a lógica do serviço significa, também, adquirir um sólido prestígio profissional, fundamentado não sobre a aparência, mas sobre a capacidade de adequar-se às necessidades reais do próximo. Trabalhar no serviço de Deus e dos homens significa assumir a responsabilidade de dar bom exemplo com o próprio trabalho, de fazer render em prol do bem comum os talentos recebidos.

Isto não se alcança sem o sério empenho de praticar as virtudes enquanto se trabalha, de pôr em jogo a competência profissional para uma finalidade que transcende o resultado imediato da própria atividade.

Num trabalho realizado assim, a motivação profunda — o amor de Deus — é evidente. Por isso, quem trabalha para servir tem como escopo, para além do reconhecimento de seu valor pessoal, a procura da vontade divina nas mil incidências da vida cotidiana. Em consequência, não perde a serenidade perante a contrariedade ou os imprevistos.

O espírito de serviço muda radicalmente a hierarquia dos valores sobre os quais a sociedade tende a construir-se ("eis a escrava do Senhor", Lc, 1, 38). Devolve ao cristão o sentido justo da realidade, porque o faz compreender quais são os autênticos ideais ("quem quiser ser grande entre vós, seja o vosso servidor; e quem dentre vós quiser ser o primeiro, seja o servo de todos", Mc, 10, 43-44) e as finalidades que deve perseguir acima de tudo.

O exemplo do bem-aventurado Josemaría ajuda-nos a encontrar no Evangelho a força para essa transformação do mundo a que os cristãos estamos chamados. Os santos testemunham a perene atualidade do Evangelho. Com eles, nós entendemos que "Jesus Cristo é o mesmo, ontem e hoje, e por todos os séculos" (Heb, 13, 8).

D. Javier Echevarría // O Globo (Rio de Janeiro)