Um balanço do Ano da Misericórdia na minha vida

Alecsandro é supernumerário do Opus Dei, trabalhou no ramo da indústria. Durante sua história passou por diversos lugares e situações nos quais pode viver obras de misericórdia corporais e espirituais, que são contadas neste artigo.

Comecei minha atividade profissional trabalhando na indústria, mas depois acabei me encaminhando para a direção de empresas de desenvolvimento econômico e social. Assim, quase sem me dar conta, um novo caminho estava se abrindo na minha vida profissional: orientar profissionalmente iniciativas de empreendedorismo em regiões pobres.

Nesta trajetória, passei por diversos lugares e situações que me ajudaram viver as obras de misericórdias corporais e espirituais.

Eu estava no Timor Leste, no final do conflito pela sua independência, e conheci uma senhora que fabricava pães caseiros e os vendia aos funcionários e membros das forças militares de paz da ONU. Havia perdido muito, mas não a força, a alegria e vontade de viver.

essa senhora com pouco mais de 60 anos produziu em mim uma esperança que carrego até hoje em todos os meus trabalhos na forma de um lema: não devemos ceder ao pessimismo!

O conflito no Timor Leste destruiu o país e, desgraçadamente, o espirito de muitas pessoas, mas essa senhora com pouco mais de 60 anos produziu em mim uma esperança que carrego até hoje em todos os meus trabalhos na forma de um lema: não devemos ceder ao pessimismo!

Ela mesma construiu o forno simples de barro, praticamente enterrado no chão e, produzia o pão para o sustento da família. Possuía uma baixíssima escolaridade, o que lhe dificultava definir os preços de venda dos pães ou mesmo conferir o troco dado por seus clientes, nem sempre conscientes da limitação daquela que propiciava a eles, com custos humanos enormes, um pão delicioso para o seu café da manhã ou da tarde.

Produzir para o sustento de sua família, era o que a fazia vencer todas as barreiras, dificuldades e buscar forças quando tudo ao seu redor compunha um cenário desolador. Mas, todas as contrariedades pareciam lhe servir de fonte de alegria.

Eu estava no país, justamente, para pensar e desenhar um programa que pudesse auxiliar as pessoas a empreender os seus próprios negócios, a fim de terem uma renda que lhes permitisse viver com dignidade. Mas era eu que aprendia: aquela senhora “estava ensinando os ignorantes”.

A experiência, obviamente, contribuiu para uma inflexão em minha carreira profissional, no que diz respeito à dimensão da responsabilidade social do ato de empreender.

Já de volta ao Brasil, desta vez na divisa dos Estados do Pará com o Amazonas, em plena floresta amazônica, o cenário a ser enfrentado não era fruto de uma guerra como a vivida no Timor Leste, mas sim decorrente do esquecimento de uma enorme população que vive na região norte do país. Porém, a chegada de uma grande empresa de origem americana fez vir à tona uma realidade social, até então não revelada, mas que em pouco tempo fez brotar esperanças, mas também as várias misérias humanas.

E, mais uma vez, ainda sem entender muito, eu estava nessa região para desenvolver um programa de geração de renda para comunidades ribeirinhas e do entorno da construção de uma mina de exploração de bauxita, matéria-prima para produção de alumínio. O foco da atuação era garantir o sustento alimentar das famílias e gerar renda por meio da produção coletiva de farinha de mandioca, produção de milho para ração de galinhas caipiras e feijão, entre outras atividades.

Abrir as portas. Colocar os produtos na vitrine. Decidir os sortimentos mais adequados para cada estação. Definir o preço de venda. Ter exclusividade de alguns produtos. Manter o atendimento impecável. O comércio, sem dúvida, é uma das atividades mais apaixonantes para os seres humanos. É o comércio que fornece o “rosto” das cidades, sobretudo das pequenas cidades. E, quando falamos de pequenos comércios no Brasil e, em diversas partes do mundo, estamos falando de famílias. Tive contato com muitas delas e creio que pude ajudá-las a pacificar algumas situações, encaminhar outras para regularizarem sua situação e criar vínculos que até hoje mantenho, com alguns contatos por e-mail.

Passado algum tempo, recordo-me de uma manhã de sábado. Era 6h20 da manhã e, já estávamos a postos numa Comunidade, em São Paulo, para iniciar a capacitação de empreendedores que mantinham negócios dentro da favela. O presidente da Associação Comunitária havia me dito: “nesse horário, não aparecerá ninguém”. Estava enganado. Pouco antes da 7h começaram a chegar os pequenos empresários para iniciarmos o programa de capacitação empresarial, com o objetivo de melhorar a gestão e os resultados dos seus negócios. Gente trabalhadora que, devido a várias circunstâncias, não haviam conseguido ter uma formação escolar e empresarial que lhe proporcionassem uma compreensão do ofício a que se dedicavam para manter a si e as suas famílias.

A experiência vivida com esses empresários ajudou-me a ver o quanto as questões familiares e a educação dos filhos estão inseridas no dia-a-dia e nas preocupações destes empreendedores. Afinal, atuam em condições adversas do ponto de vista da segurança, qualidade de vida e vulneráveis a toda sorte de riscos. E, mesmo assim, são provas vivas de que as boas escolhas proporcionam a melhoria de vida de suas famílias. Também aí aprendi muito e pude ensinar um pouco, não só de gestão de empresas, mas de gestão das próprias vidas.

Alecsandro durante uma atividade realizada no Rio de Janeiro.

Noutro cenário, uma pequena cidade do interior do Estado de Minas Gerais, o trabalho de desenvolvimento econômico e social tinha como origem uma multinacional Suíça, que dentro de seu escopo de atuação incluiu a responsabilidade social corporativa.

O objetivo era amplo: cultura empreendedora para jovens, direção de empresas para o comércio local e produtores de leite, fortalecimento de associações comunitárias, APAE- Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais e o Asilo da cidade. E sempre com o foco de gerar renda como fruto do próprio trabalho, sem depender de ajuda de assistência do Poder Público ou Estatal para garantir o sustento das famílias ou das próprias organizações sociais.

Pude ver que era verdade o ensinamento de que "o desenvolvimento que só inclui o aspecto técnico-econômico e, que se fecha nos meios materiais é limitado, ou melhor, está fadado ao insucesso."

A maior parte dos comércios, como disse acima, são familiares e, assim, as relações muitas vezes são pautadas pela relação marido e mulher, pai e filhos e etc. Nem sempre o desafio é do âmbito dos negócios propriamente dito, mas sim, das relações familiares e de suas crenças, o que sem o devido cuidado pode pôr tudo a perder no aspecto econômico. Trabalhar com os comerciantes e suas circunstâncias significa entrar em suas casas, em suas famílias, em suas alegrias, expectativas e frustações tão humanas. Nessas ocasiões, quase instintivamente, me tornava um conselheiro de questões que estavam além do escopo profissional para o que fora contratado. Porém, com o passar dos anos, pude constar o que o Professor Catedrático de Ética Empresarial do IESE Business School, Domènec Melé, tão bem registrou no livro de comentários interdisciplinares sobre a Encíclica Caritas in Veritate do Papa Bento XVI: o desenvolvimento que só inclua o aspecto técnico-econômico e, que se fecha nos meios materiais sem considerar o sentido último do desenvolvimento, aquele que dá significado humano com suas dimensões afetivas, comunitária, espiritual e religiosa, é limitado, ou melhor, está fadado ao insucesso.

São Josemaria Escrivá, na homilia proferida na Universidade de Navarra, em 1967, disse: “Meus filhos: aí onde estão os nossos irmãos, os homens, aí onde estão as nossas inspirações, o nosso trabalho, os nossos amores, aí está o lugar do nosso encontro cotidiano com Cristo. É no meio das coisas mais materiais da terra que nós devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens”. [...] “O mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura dEle, porque Javé olhou para ele e viu que era bom. Nós, os homens, é que fazemos ruim e feio, com os nossos pecados e infidelidades. Não duvidem, meus filhos: qualquer modo de evasão das honestas realidades diárias é para os homens e mulheres do mundo coisa oposta à vontade de Deus”.

Uma das dinâmicas de trabalho realizadas em Minas Gerais.

E foi assim, convencido deste caminho que, pela graça de Deus, pude entrar na vida de inúmeras pessoas, constatando que, apesar do foco do meu trabalho ao longo dos anos ter sido o desenvolvimento econômico e social bem como a estruturação de negócios, em diversas circunstâncias as questões mais importantes não são as de origem empresarial. Muito pelo contrário! E quanto não se pode fazer para ajudar neste campo!

Instruir, aconselhar, consolar, confortar, entre outras obras de misericórdia espirituais são sempre exigidas daqueles que são chamados a santificar o seu trabalho ordinário. E, se conseguimos como fruto de nossa atividade de trabalho dar de comer a quem tem fome, albergar quem não tem teto, vestir os nus, visitar os doentes e os presos, sepultar os mortos, podemos realmente nos alegrar em não ceder ao pessimismo!

A caridade cristã é uma virtude e, não uma filosofia. E aqui, mais uma vez, graças a providência divina, minhas atividades profissionais encontraram o sentido humano e sobrenatural.

Por Alecsandro Araujo de Souza