O coração de Cristo, paz dos cristãos

Homilia de São Josemaria sobre a festa do Sagrado Coração de Jesus, publicada no livro "É Cristo que passa".

Conhecer o coração de Jesus (7:23 min) - em espanhol

A verdadeira devoção ao coração de Cristo (14:37 min) - em espanhol


Deus Pai dignou-se conceder-nos, no coração de seu Filho, infinitos dilectionis thesauros , tesouros inesgotáveis de amor, de misericórdia, de carinho. Se quisermos descobrir a evidência de que Ele nos ama - de que não só escuta as nossas orações, como a elas se antecipa -, basta-nos seguir o mesmo raciocínio de São Paulo: Aquele que nem ao seu próprio Filho perdoou, antes o entregou à morte por todos nós, como não nos dará com Ele todas as coisas?

A graça renova o homem por dentro e converte-o, de pecador e rebelde, em seno bom e fiel. E a fonte de todas as graças é o amor que Deus nos dedica e que nos revelou, não apenas com palavras, mas também com fatos. Foi o amor divino que levou a segunda Pessoa da Santíssima Trindade - o Verbo, o Filho de Deus Pai - a assumir a nossa carne, isto é, a nossa condição humana, à exceção do pecado. E o Verbo, a Palavra de Deus, é Verbum spirans amorem, é a Palavra da qual procede o Amor.

O Amor revela-se-nos através da Encarnação, desse caminhar redentor de Jesus Cristo pela nossa terra, até ao sacrifício supremo da Cruz. E, na Cruz, manifesta-se por meio de um novo sinal: Um dos soldados abriu o lado de Jesus com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água. Água e sangue de Jesus, que nos falam de uma entrega realizada até ao último extremo, até ao consummatum est , ao “tudo está consumado”, por amor.

Na festa de hoje, ao considerarmos uma vez mais os mistérios centrais da nossa fé, maravilhamo-nos de que as realidades mais profundas - o amor de Deus Pai, que nos entrega seu Filho; o amor do Filho, que o leva a caminhar serenamente para o Gólgota - se traduzam em gestos muito próximos dos homens. Deus não se dirige a nós em atitude de poder e de domínio. Aproxima-se de cada um tomando forma de servo, feito semelhante aos homens. Jesus nunca se mostra distante ou altaneiro. Por vezes, durante os seus anos de pregação, chegamos a vê-lo desgostoso, por lhe doer a maldade humana. Mas, se prestamos um pouco de atenção, logo compreendemos que o desgosto e a ira lhe nascem do amor: são um novo convite para que abandonemos a infidelidade e o pecado. Quero eu porventura a morte do ímpio - diz o Senhor Deus -, e não antes que se converta do seu mau caminho e viva? Estas palavras explicam-nos toda a vida de Cristo e fazem-nos compreender por que se apresentou diante de nós com um Coração de carne, com um Coração como o nosso, que é prova fidedigna de amor e testemunho constante do mistério inenarrável da caridade divina.

Não posso deixar de confidenciar algo que constitui para mim motivo de pena e ao mesmo tempo de estímulo para agir: é pensar nos homens que ainda não conhecem Cristo, que ainda não vislumbram a profundidade da bem-aventurança que nos espera nos céus, e que andam pela terra como cegos, em perseguição de uma alegria cujo verdadeiro nome ignoram, ou se perdem por caminhos que os afastam da autêntica felicidade. Como se entende bem o que deve ter sentido o Apóstolo Paulo na cidade de Trôade, naquela noite em que, entre sonhos, teve uma visão! Um homem macedônio postou-se diante dele, rogando-lhe: passa a Macedônia e ajuda-nos. Terminada a visão, logo procuraram - Paulo e Timóteo - passar à Macedônia, certos de que Deus os chamava a pregar o Evangelho àquelas gentes.

Não sentimos também que Deus nos chama, que - através de tudo o que sucede à nossa volta - nos incita a proclamar a boa nova da vinda de Jesus? Mas às vezes nós, cristãos, apoucamos a nossa vocação, caímos na superficialidade e perdemos o tempo em disputas e rixas. Ou, o que é pior ainda, não falta quem se escandalize falsamente com o modo como os outros vivem certos aspectos da fé ou determinadas devoções; e, em lugar de abrirem eles o caminho, esforçando-se por vivê-las da maneira que consideram reta, se põem a destruir e a criticar. É claro que podem surgir, e de fato surgem, deficiências na vida dos cristãos. Mas o que importa não somos nós e as nossas misérias: só Ele, só Jesus, é que importa. É de Cristo que devemos falar, não de nós mesmos.

As reflexões que acabo de fazer vão ao encontro de certos comentários sobre uma suposta crise na devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Não há tal crise. A verdadeira devoção foi e continua a ser nos nossos dias uma atitude viva, cheia de sentido humano e de sentido sobrenatural. Seus frutos têm sido e continuam a ser frutos saborosos de conversão, de entrega, de cumprimento da vontade de Deus, de penetração amorosa nos mistérios da Redenção.

Coisa bem diversa, pelo contrário, são as manifestações do sentimentalismo ineficaz, vazio de doutrina, empanturrado de pietismo. Eu também não gosto das imagens adocicadas, dessas representações do Sagrado Coração que não podem inspirar devoção alguma a pessoas com senso comum e com senso sobrenatural de cristãos. Mas não é prova de boa lógica converter certos abusos práticos, que acabam desaparecendo por si, num problema doutrinal, teológico.

Se há crise, é no coração dos homens, que - por miopia, por egoísmo, por estreiteza de vistas - não conseguem vislumbrar o insondável amor de Cristo Senhor Nosso. Desde que se instituiu a festa de hoje, a liturgia da Santa Igreja soube oferecer o alimento da verdadeira piedade, incluindo entre as leituras da missa um texto de São Paulo em que nos é proposto todo um programa de vida contemplativa - conhecimento e amor, oração e vida -, e que começa por esta devoção ao Coração de Jesus. O próprio Deus, pela boca do Apóstolo, nos convida a avançar por esse caminho: Que Cristo habite pela fé em vossos corações; e que, arraigados e alicerçados na caridade, possais compreender com todos os santos qual a amplitude e a grandeza, a altura e a profundidade do mistério; e conhecer também aquele amor de Cristo que excede todo o conhecimento, para que estejais repletos de toda a plenitude de Deus.

A plenitude de Deus é-nos revelada e conferida em Cristo, no amor de Cristo, no Coração de Cristo. Porque é o Coração dAquele em quem habita toda a plenitude da divindade corporalmente. Por isso, se perdermos de vista este grande desígnio de Deus - a corrente de amor instaurada no mundo pela Encarnação, pela Redenção e pelo Pentecostes -, não poderemos compreender as delicadezas do Coração do Senhor.

Consideremos toda a riqueza que se encerra nestas palavras: Sagrado Coração de Jesus.

Quando falamos de um coração humano, não nos referimos apenas aos sentimentos; aludimos à pessoa toda - que quer, que ama, que convive com os outros. E, no modo de os homens se exprimirem, que a Sagrada Escritura acolheu para nos dar a entender as coisas divinas, o coração é considerado como o resumo e a fonte, a expressão e o fundo íntimo dos pensamentos, das palavras, das ações. Um homem vale o que valer o seu coração, poderíamos dizer com palavras da nossa linguagem.

Ao coração pertencem a alegria: Alegre-se meu coração com o teu auxílio ; o arrependimento: Meu coração é como cera que se derrete dentro do meu peito ; o louvor a Deus: Do meu coração brota formoso canto ; a decisão necessária para ouvir o Senhor: Meu coração está disposto ; a vigília amorosa: Eu durmo, mas meu coração vigia. E ainda a dúvida e o temor: Não se perturbe o vosso coração, crede em Mim.

O coração não se limita a sentir; também sabe e entende. A lei de Deus é recebida no coração e nele permanece escrita. E a Escritura acrescenta: Da abundância do coração fala a boca. O Senhor lançou em rosto a uns escribas esta censura: Por que pensais mal em vossos corações?. E, para resumir todos os pecados que um homem pode cometer, disse: Do coração saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias.

Quando na Sagrada Escritura se fala do coração, não se alude a um sentimento passageiro, que produz emoção ou lágrimas. Fala-se do coração para indicar a pessoa que, como o próprio Jesus Cristo nos manifestou, se orienta toda ela - alma e corpo -, para o que considera seu bem: porque onde está o teu tesouro, aí está o teu coração.

Por isso, quando falamos do Coração de Jesus, pomos de manifesto a certeza do amor de Deus e a verdade da sua entrega por nós. Recomendar a devoção a esse Sagrado Coração equivale a recomendar que nos orientemos integralmente - com tudo o que somos: alma, sentimentos, pensamentos, palavras e ações, trabalhos e alegrias - para Jesus todo.

Nisto se traduz a verdadeira devoção ao Coração de Jesus: em conhecer a Deus e nos conhecermos a nós mesmos, e em olhar para Jesus e recorrer a Jesus, que nos anima, nos ensina, nos guia. A única superficialidade que pode existir nesta devoção é a do homem que, não sendo integralmente humano, não consegue alcançar a realidade de um Deus feito carne.

Jesus na Cruz, com o coração trespassado de Amor pelos homens, é uma resposta eloqüente - as palavras são desnecessárias - à pergunta sobre o valor das coisas e das pessoas. Valem tanto os homens, a sua vida e a sua felicidade, que o próprio Filho de Deus se entrega para os redimir, para os purificar, para os elevar. Quem não amará o seu Coração tão ferido?, perguntava uma alma contemplativa, ao aperceber-se disso. E continuava perguntando: Quem não retribuirá o amor com amor? Quem não abraçará um Coração tão puro? Nós, que somos de carne, pagaremos amor com amor, abraçaremos o nosso Ferido, a quem os ímpios atravessaram as mãos e os pés, o lado e o Coração. Peçamos que se digne prender nosso coração com o vínculo do seu amor e feri-lo com uma lança, pois é ainda duro e impenitente.

São pensamentos, afetos, colóquios que as almas enamoradas entretiveram com Jesus desde sempre. Mas, para entender esta linguagem, para saber de verdade o que é o coração humano, e o Coração de Cristo, e o amor de Deus, é preciso ter fé e humildade. Foi com fé e humildade que Santo Agostinho nos deixou estas palavras universalmente famosas: Para Ti nos criaste, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto em Ti não descansar.

Quando descura a humildade, o homem passa a querer apropriar-se de Deus, não daquela maneira divina que o próprio Cristo tornou possível quando disse: Tomai e comei: isto é o meu corpo , mas tentando reduzir a grandeza divina aos limites humanos. A razão, essa razão fria e cega - que não é a inteligência nascida da fé, nem sequer a inteligência reta da criatura capaz de saborear e amar as coisas -, converte-se na sem-razão de quem tudo submete às suas pobres experiências habituais, que amesquinham a verdade sobrenatural e recobrem o coração humano de uma crosta insensível às moções do Espírito Santo. Nossa pobre inteligência estaria perdida se não fosse o poder misericordioso de Deus, que rasga as fronteiras da nossa miséria: Dar-vos-ei um coração novo e revestir-vos-ei de um novo espírito; tirarei o vosso coração de pedra e dar-vos-ei em seu lugar um coração de carne. E a alma recupera a luz e enche-se de alegria ante as promessas da Escritura Santa.

Eu tenho pensamentos de paz e não de aflição , declarou Deus por boca do profeta Jeremias. A liturgia aplica essas palavras a Jesus, porque nEle se manifesta claramente que é assim que Deus nos ama. Não vem condenar-nos, não vem lançar-nos em rosto a nossa indigência ou a nossa mesquinhez: vem salvar-nos, perdoar-nos, desculpar-nos, trazer-nos a paz e a alegria. Se reconhecermos esta maravilhosa relação do Senhor com seus filhos, nossos corações mudarão necessariamente, e veremos abrir-se diante dos nossos olhos um panorama absolutamente novo, cheio de relevo, de profundidade e de luz.

Mas vejamos bem: Deus não nos declara que, em lugar do coração, nos dará uma vontade de puro espírito. Não. Dá-nos um coração, e um coração de carne, como o de Cristo. Eu não disponho de um coração para amar a Deus, e de outro para amar as pessoas da terra. Com o mesmo coração com que amei os meus pais e estimo os meus amigos, com esse mesmo coração amo a Cristo, e o Pai, e o Espírito Santo, e Santa Maria. Não me cansarei de repeti-lo: temos que ser muito humanos; porque, de outro modo, também não poderemos ser divinos.

O amor humano, o amor aqui em baixo na terra, quando é verdadeiro, ajuda-nos a saborear o amor divino. E assim entrevemos o amor com que chegaremos a gozar de Deus e aquele que nos há de unir uns aos outros, lá no céu, quando o Senhor for tudo em todas as coisas. E ao começarmos a entender o que é o amor divino, seremos impelidos a mostrar-nos habitualmente mais compassivos com os outros, mais generosos, mais dedicados.

Temos que dar o que recebemos, ensinar o que aprendemos. Sem arrogância, com simplicidade, temos que fazer os outros participarem desse conhecimento do amor de Cristo. Ao realizar o seu trabalho, ao exercer a profissão na sociedade, cada um pode e deve converter as suas ocupações numa tarefa de serviço. O trabalho bem acabado - que progride e faz progredir, que tem em conta os avanços da cultura e da técnica - desempenha uma grande função, que será sempre útil à humanidade inteira, desde que tenha por motivo a generosidade, não o egoísmo; o bem de todos, não o proveito próprio: desde que esteja impregnado de sentido cristão da vida.

É no âmbito desse trabalho, na própria trama das relações humanas, que devemos manifestar a caridade de Cristo e seus resultados concretos de amizade, de compreensão, de afeto humano, de paz. Assim como Cristo passou fazendo o bem por todos os caminhos da Palestina, assim temos nós que desenvolver uma grande sementeira de paz pelos caminhos humanos da família, da sociedade civil, das relações profissionais, da cultura e do descanso. Será a melhor prova de que nos chegou ao coração o reino de Deus: Nós sabemos que fomos transferidos da morte para a vida - escreve o Apóstolo São João - porque amamos os nossos irmãos.

Mas ninguém pode viver esse amor se não se formar na escola do Coração de Jesus. Só se olharmos e contemplarmos o Coração de Cristo, é que conseguiremos que o nosso se livre do ódio e da indiferença; somente assim saberemos reagir cristãmente perante os sofrimentos alheios e perante a dor.

Recordemos a cena relatada por São Lucas, quando Cristo andava pelas proximidades da cidade de Naim. Jesus vê a angústia daquelas pessoas com quem se cruzou ocasionalmente. Podia ter passado ao largo, ou esperar por um chamado, por um pedido. Mas nem se afasta nem espera. Toma Ele próprio a iniciativa, movido pela aflição de uma viúva que havia perdido tudo o que lhe restava: o filho.

O evangelista explica que Jesus se compadeceu: talvez se tivesse emocionado externamente, como por ocasião da morte de Lázaro. Jesus Cristo não era nem é insensível ao sofrimento que nasce do amor, nem se compraz em separar os filhos de seus pais: passa além da morte para dar a vida, para que estejam perto os que se amam, embora exija antes e ao mesmo tempo a proeminência do Amor divino, que deve informar a autêntica existência cristã.

Cristo tem consciência de estar rodeado de uma multidão que ficará atônita perante o milagre e irá apregoando o acontecido por toda a região. Mas o Senhor não se comporta artificialmente, não pretende realizar um grande gesto: sente-se simplesmente afetado pelo sofrimento daquela mulher e não pode deixar de a consolar. Aproximou-se dela e disse-lhe: Não chores. Foi como se lhe dissesse: não te quero ver em lágrimas, porque eu vim trazer a alegria e a paz à terra. A seguir, vem o milagre, manifestação do poder de Cristo-Deus. Mas antes tivera lugar a comoção de sua alma, manifestação evidente da ternura do coração de Cristo-Homem.

Se não aprendermos de Jesus, não amaremos nunca. Se pensarmos, como alguns, que conservar o coração limpo, digno de Deus, significa não misturá-lo, não contaminá-lo com afetos humanos, então o resultado lógico será tornarmo-nos insensíveis à dor dos outros. Só seremos capazes de uma caridade oficial, seca e sem alma; não da verdadeira caridade de Jesus Cristo, que é ternura, calor humano. Com isto não dou pé a falsas teorias, que são tristes desculpas para desviar os corações de Deus e levá-los a más ocasiões e à perdição.

Na festa de hoje, temos de pedir ao Senhor que nos conceda um coração bom, capaz de se compadecer das penas das criaturas, capaz de compreender que, para remediar os tormentos que acompanham e não poucas vezes angustiam as almas neste mundo, o verdadeiro bálsamo é o amor, a caridade: todos os outros consolos apenas servem para distrair por um momento, e deixar mais tarde um saldo de amargura e desespero.

Se queremos ajudar os outros, temos que amá-los - insisto - com um amor que seja compreensão e entrega, afeto e voluntária humildade. Assim entenderemos por que o Senhor decidiu resumir toda a Lei nesse duplo mandamento que é na realidade um só: o amor a Deus e o amor ao próximo, com todo o coração.

Talvez pensemos agora que, às vezes, nós os cristãos - não os outros: tu e eu - nos esquecemos das aplicações mais elementares desse dever. Talvez pensemos em tantas injustiças que não se remedeiam, em abusos que não se corrigem, em situações de discriminação que se transmitem de geração em geração sem que se comece a pôr em prática uma solução de fundo.

Não posso nem me compete propor a forma concreta de resolver esses problemas. Mas, como sacerdote de Cristo, é meu dever recordar o que diz a Escritura Santa. Meditemos na cena do Juízo descrita pelo próprio Jesus: Afastai-vos de num, malditos, e ide para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; fui peregrino e não me recebestes; nu, e não me cobristes; enfermo e encarcerado, e não me visitastes.

Um homem e uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças, e não se esforcem por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do amor do Coração de Cristo. Os cristãos - conservando sempre a mais ampla liberdade à hora de estudar e de aplicar as diversas soluções, e, portanto, com um lógico pluralismo - devem identificar-se no mesmo empenho em servir a humanidade. De outro modo, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de Jesus: será um disfarce, um logro perante Deus e perante os homens.

Mas não quero deixar de propor ainda uma outra consideração: temos que lutar sem esmorecimento por fazer o bem, precisamente por sabermos como é difícil que nós, os homens, nos decidamos seriamente a praticar a justiça - e ainda falta muito para que a convivência terrena se inspire no amor, e não no ódio ou na indiferença. Não ignoramos também que, embora se consiga atingir uma razoável distribuição dos bens e uma harmoniosa organização da sociedade, jamais desaparecerá a dor da doença, da incompreensão ou da solidão, da morte das pessoas que amamos, da experiência das nossas limitações.

Diante desses pesares, o cristão só tem uma resposta autêntica, uma resposta que é definitiva: Cristo na Cruz, Deus que sofre e que morre, Deus que nos entrega o seu coração, aberto por uma lança, por amor a todos. Nosso Senhor abomina as injustiças e condena quem as comete. Mas respeita a liberdade de cada indivíduo e por isso permite que elas existam. Deus Nosso Senhor não causa a dor das criaturas, mas tolera-a porque - depois do pecado original - ela faz parte da condição humana. Contudo, seu Coração cheio de Amor pelos homens levou-o a carregar, juntamente com a Cruz, todos esses tormentos: o nosso sofrimento, a nossa tristeza, a nossa angústia, a nossa fome e sede de justiça.

A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de consolos fáceis. É, em primeiro lugar, uma doutrina de aceitação do sofrimento, que é de fato inseparável de toda a vida humana. Não posso ocultar - com alegria, porque sempre preguei e procurei viver que onde está a Cruz está Cristo, o Amor - que a dor tem aparecido freqüentemente em minha vida; e mais de uma vez tive vontade de chorar. Em outras ocasiões, senti que crescia o meu desgosto perante a injustiça e o mal. E provei o dissabor de ver que não podia fazer nada, que, apesar dos meus desejos e dos meus esforços, não conseguia melhorar certas situações iníquas.

Quando falo de dor, não falo apenas de teorias. Nem me limito a registrar experiências alheias quando confirmo que, se alguma vez sentimos vacilar a alma perante a realidade do sofrimento, o remédio é olhar para Cristo. A cena do Calvário proclama a todos que as aflições devem ser santificadas, se vivemos unidos à Cruz.

Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em desagravo, em participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente experimentou, por Amor aos homens, toda a gama da dor, todo o gênero de tormentos. Nasceu, viveu e morreu pobre; foi atacado, insultado, difamado, caluniado e condenado injustamente; conheceu a traição e o abandono dos discípulos; experimentou a solidão e as amarguras do suplício e da morte. Ainda hoje Cristo continua a sofrer nos seus membros, na humanidade inteira que povoa a terra, e da qual Ele é a Cabeça, o Primogênito e o Redentor.

A dor tem um lugar nos planos de Deus. Esta é a realidade, ainda que nos custe entendê-la. O próprio Jesus Cristo, como homem, teve dificuldade em suportá-la: Pai, se é possível, afasta de mim este cálice; não se faça, porém, a minha vontade, mas a tua. Nesta tensão entre o suplício e a aceitação da vontade do Pai, Jesus vai para a morte serenamente, perdoando aos que o crucificam.

Mas precisamente essa aceitação sobrenatural da dor representa, ao mesmo tempo, a maior conquista. Morrendo na Cruz, Jesus venceu a morte: da morte, Deus tira a vida. A atitude de um filho de Deus não é a de quem se resigna à sua trágica desventura; é antes a satisfação de quem saboreia antecipadamente a vitória. Em nome desse amor vitorioso de Cristo, os cristãos devem lançar-se por todos os caminhos da terra, para serem semeadores de paz e de alegria, com a sua palavra e com as suas obras. Temos de lutar - é uma luta de paz - contra o mal, contra a injustiça, contra o pecado, para proclamar assim que a atual condição humana não é a definitiva, que o amor de Deus, manifestado no Coração de Cristo, alcançará o glorioso triunfo espiritual dos homens.

Evocávamos antes os acontecimentos de Naim. Poderíamos citar agora muitos outros, porque os Evangelhos estão cheios de cenas semelhantes. Esses relatos sempre comoveram e continuarão a comover os corações das criaturas; porque não encerram apenas o gesto sincero de um homem que se compadece dos seus semelhantes, mas são essencialmente a revelação da imensa caridade do Senhor. O Coração de Jesus é o Coração de Deus encarnado, do Emmanuel - Deus conosco.

A Igreja, unida a Cristo, nasce de um coração ferido. É desse Coração, aberto de par em par, que nos é transmitida a vida. Embora de passagem, como não recordar aqui os Sacramentos, através dos quais Deus opera em nós e nos faz participar da força redentora de Cristo? Como não recordar com particular agradecimento o Santíssimo Sacramento da Eucaristia, o Santo Sacrifício do Calvário e a sua constante renovação incruenta na nossa Missa? Jesus entrega-se a nós em alimento; Jesus Cristo vem até nós. E por isso tudo mudou, e no nosso ser se manifestam forças - a ajuda do Espírito Santo - que se apossam da nossa alma, que informam as nossas ações, o nosso modo de pensar e de sentir. O Coração de Cristo é paz para o cristão.

O fundamento da entrega que o Senhor nos pede não se encontra apenas nos nossos desejos ou nas nossas forças, tantas vezes acanhados e impotentes; apóia-se primeiramente nas graças que nos alcançou o Amor do Coração de Deus feito Homem. Por isso podemos e devemos perseverar na nossa vida interior de filhos de Nosso Pai que está nos céus, sem ceder ao desânimo ou ao desalento. Gosto de mostrar como o cristão, na sua existência habitual e corrente, nos pormenores mais simples, nas circunstâncias normais da sua jornada de trabalho, põe em prática a fé, a esperança e a caridade, porque é nisso que reside a essência da conduta de uma alma que conta com o auxílio divino e que, no exercício dessas virtudes teologais, encontra a alegria, a força e a serenidade.
Estes são os frutos da paz de Cristo, da paz que nos traz o seu Coração Sacratíssimo.

Porque - digamo-lo uma vez mais - o amor de Jesus pelos homens é um dos aspectos insondáveis do mistério divino, do amor do Filho pelo Pai e pelo Espírito Santo. O Espírito Santo, laço de amor entre o Pai e o Filho, encontra no Verbo um Coração humano.
Não é possível falar destas realidades centrais da nossa fé sem percebermos as limitações da inteligência humana e as grandezas da Revelação. Mas, embora não possamos abarcar essas verdades, embora a nossa razão se pasme diante delas, nós as cremos humilde e firmemente: sabemos, apoiados no testemunho de Cristo, que são assim; que o Amor, no seio da Trindade, se derrama sobre todos os homens por meio do Amor do Coração de Jesus.

Viver no Coração de Jesus, unir-se a Ele estreitamente é, portanto, converter-se em morada de Deus. Aquele que me ama será amado por meu Pai , anunciou-nos o Senhor. E Cristo e o Pai, no Espírito Santo, vêm à alma e fazem nela a sua morada.

Quando compreendemos estes fundamentos - mesmo em parte -, a nossa maneira de ser transforma-se. Temos fome de Deus e fazemos nossas as palavras do Salmo: Meu Deus, eu Te busco solícito; sedenta de Ti está minha alma; minha carne Te deseja como terra árida, sem água. E Jesus, que fomentou as nossas ânsias, sai ao nosso encontro e diz-nos: Se alguém tem sede, venha a Mim e beba. Oferece-nos o seu Coração, para que encontremos nele o nosso descanso e a nossa fortaleza. Se aceitarmos o seu chamado, perceberemos como as suas palavras são verdadeiras, e aumentará a nossa fome e a nossa sede, até desejarmos que Deus estabeleça em nosso coração o lugar do seu repouso e não afaste de nós o seu calor e a sua luz.

Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur? Vim trazer fogo à terra, e que quero senão que arda? Agora que nos abeiramos um pouco do fogo do Amor de Deus, deixemos que seu impulso mova as nossas vidas, sonhemos com a possibilidade de levar o fogo divino de um extremo ao outro do mundo, de o dar a conhecer aos que nos rodeiam, para que também eles conheçam a paz de Cristo e, com ela, encontrem a felicidade. Um cristão que viva unido ao Coração de Jesus não pode ter outras metas: a paz na sociedade, a paz na Igreja, a paz na sua própria alma, a paz de Deus, que se consumará quando vier a nós o seu reino.

Maria, Regina Pacis, Rainha da Paz, porque tiveste fé e acreditaste que se cumpriria o anúncio do Anjo, ajuda-nos a crescer na fé, a ser firmes na esperança, a aprofundar no Amor. Porque isso é o que hoje quer de nós o teu Filho, ao mostrar-nos o seu Sacratíssimo Coração.

É Cristo que passa, n. 162-170