Construindo uma cultura da vida

Dolores Voltas Baró, médica endocrinologista, vogal da Sociedade Catalã de Bioética, da Academia das Ciências Médicas da Catalunha e Baleares, Espanha

Em 1954 iniciei o curso de Medicina na Universidade de Barcelona. O meu irmão mais velho entusiasmou-me a transferir-me, no ano seguinte, para Navarra, onde começava uma universidade nova, e animei-me. Na realidade, não era ainda uma Universidade. O meu irmão, médico recém-licenciado, apresentou-me ao Prof. Jiménez Vargas que, depois de uma entrevista, me ofereceu um trabalho em Pamplona no Departamento de Fisiologia Humana do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC). Isto me permitia custear a minha estadia ali. Solicitei também isenção de propinas, que me concederam pelo bom currículo acadêmico apresentado. Dois anos mais tarde regressei a Barcelona para terminar o curso. Mas recordo como se fosse ontem aqueles dois anos de Pamplona, que marcaram a minha vida para sempre.

O meu trabalho no CSIC não tinha muito a ver com a importância do seu nome: comecei por abrir caixotes de madeira repletos de material de laboratório e a colocá-lo em prateleiras de tijolo que antes tive de limpar. Colaborei muito ativamente na preparação do cadáver para as primeiras aulas práticas de Anatomia do meu próprio curso - o primeiro de médicos de Navarra -, ajudei também na preparação das práticas de Fisiologia com animais. Assim aprendi com rapidez e de modo prático que tudo o que é grande começa sendo pequeno. E descobri uma coisa nova: que o trabalho, que sempre tinha considerado importante, se podia oferecer a Deus.

Nos meus momentos livres, datilografava o manuscrito de um livro sobre Nossa Senhora, que um sacerdote do Opus Dei estava a escrever, e fui, portanto, a primeira pessoa a lê-lo. O livro mostrava com clareza que a vocação do cristão é uma chamada de Deus. Estava repleto de ensinamentos de São Josemaria, e revelou-me o modo concreto de eu ser uma boa cristã. O autor perguntou-me a minha opinião sobre o livro e depois disse: “Eu, se fosse a ti, lançava-me à água a nadar como os patos”. Soube um tempo depois que esta era a maneira coloquial que São Josemaria Escrivá usava para animar a confiar em Deus, a não ter medo das dificuldades.

Já me tinha familiarizado com o espírito de São Josemaria quando comecei a namorar com aquele que depois seria meu marido. Tinha sido o meu irmão médico, que era seu colega de curso, que mo tinha apresentado.

Casamo-nos em 1962, um ano depois de me formar. Participei o meu casamento ao fundador do Opus Dei. Ao regressar da viagem de Lua de Mel, encontrei uma carta sua, de Roma, em que me dava a sua bênção para o meu novo lar. Compreendi que o matrimonio era muito importante, mesmo muito importante. Sabia-o, mas que São Josemaria me respondesse, e na volta do correio, impressionou-me muito. Poucos meses depois, tive a sorte de conhecê-lo em Barcelona e de que desse uma bênção especial para aquelas que estávamos ali, à espera de um filho. Eu estava grávida do primeiro; depois vieram outros seis.

“Eu abençoo esse amor com as duas mãos, e, quando me perguntam por que digo com as duas mãos, a minha resposta é imediata: porque não tenho quatro!”

Tenho sempre presentes umas palavras suas referidas ao amor dos nossos pais: “Eu abençoo esse amor com as duas mãos, e, quando me perguntam por que digo com as duas mãos, a minha resposta é imediata: porque não tenho quatro!”. Durante a sua viagem de catequese por Espanha em 1972, tive ocasião de lhe pedir um conselho para conciliar o trabalho do lar – profissão do lar – e outra profissão. E respondeu-me: “Se fazes essa pergunta, é porque o assunto te preocupa e estás a resolvê-lo bem”. As suas palavras animaram-me a continuar a fazer o que fazia; e talvez não fosse tanto pelas palavras em concreto, mas pela confiança que infundiu em mim.

Pouco depois, o meu marido e eu começamos a dar sessões de preparação para o casamento a casais de noivos em várias paróquias da arquidiocese de Barcelona. Fizemo-lo durante mais de dez anos. Também procuramos colaborar ao máximo nos colégios dos nossos filhos: fazendo parte do Conselho de Direção, dando sessões dirigidas aos pais, professores e alunos. Eu tinha posto de lado o exercício da Medicina para me dedicar à família: médicas havia muitas, mas mães dos meus filhos era só eu. Procurei o modo de transmitir aos filhos dos outros o mesmo que tentava transmitir aos meus. No colégio das minhas filhas comecei a dar umas aulas a adolescentes, que elas chamavam ‘aulas de amor’; e antes me reunia com as mães. Josemaria Escrivá dizia às vezes que tinha “matado muitas cegonhas”, referindo-se à necessidade de informar com clareza, com integridade os adolescentes neste campo, e para essa formação procurei contribuir.

Estou certa de que os ensinamentos de São Josemaria me ajudaram ao longo da vida a ir tomando decisões e a assumir tarefas a favor da vida. Não é que da noite para o dia me tenha dedicado a construir uma cultura da vida. Mas que o espírito de serviço, a vontade de fazer as coisas bem, esse ânimo para ser útil e deixar rasto, que Josemaria Escrivá difundiu, fizeram com que uma pessoa começasse a preencher a vida pouco a pouco. Uma coisa leva-nos a outra, e cada vez nos sentimos que estamos mais preparadas para ajudar os outros.

Entretanto iam nascendo os meus filhos. Estudei para conseguir uma especialidade médica que me permitisse trabalhar mantendo a dedicação à minha família, e consegui-o. Comecei a exercer Medicina, de novo, há 25 anos. E há 25 anos também, que promovi juntamente com o meu marido e outras pessoas a primeira Associação pró-vida em Espanha. Tinha uma boa rodagem. Tinha começado a construir uma cultura da vida “a partir das próprias raízes”, como diz João Paulo II: o casamento, as relações conjugais, educar os próprios filhos e os dos outros para o amor. Faltava-me a ajuda direta a mães em dificuldades por motivo da sua maternidade; e não só dificuldades materiais, que sempre têm solução. Refiro-me, sobretudo às mulheres que pensam que um filho é um estorvo para os seus planos. Mas isto exige uma ação em paralelo nos lugares em que se forja o pensamento, na investigação, no mundo acadêmico. É um assunto que compromete a todos. A mim cabe-me estar na Ordem dos Médicos, fomentar o aparecimento de mais associações cívicas que promovam uma cultura de vida. Desde há 20 anos pertenço à Comissão Deontológica da Ordem dos Médicos de Barcelona.

Olhando para trás verifico a importância de “estar” nos lugares que nos competem: primeiro, em minha casa, com o meu marido e os meus filhos; depois nos colégios; depois na profissão exercendo-a, na Ordem dos Médicos, nos lugares onde se tomam decisões; e no ambiente em que vivo, associando-me a outras pessoas, cidadãos, que como eu, querem atingir objetivos concretos. No meu caso, esses objetivos são: ajudar as mães e famílias em dificuldade, e promover uma cultura de respeito pela vida.

O ter estado no lugar certo, no momento adequado, dá os seus frutos. Nestes anos tive possibilidade de ajudar milhares de mães que puderam ter e amar os seus filhos, e muitas mulheres que perderam o medo à maternidade. Atualmente existem em Espanha mais de 30 associações de defesa da vida humana, unidas numa Federação de que sou Secretária Geral.

Tive ocasião de falar e promover o respeito pela vida em rádios, televisões, foros universitários, escolas, centros culturais, reuniões políticas. E de participar em debates e relacionar-me com pessoas que promovem a cultura da morte, com quem procurei sempre falar abertamente, mas sem ferir. Nunca com ódio ou falta de respeito, esforçando-me por tornar amável a verdade. Também publiquei artigos e entrevistas na imprensa escrita.

Nas reuniões de trabalho da Comissão de Deontologia e Ética Profissional, tive muitas ocasiões de dar a minha opinião. Documentei-me bem e estudei. Dizer a verdade sobre determinados temas muito discutidos hoje em dia é muito difícil: é preciso ser firme, inclusivamente audacioso. Não se trata de dizer a verdade porque é minha, mas porque aderi a ela, e há outras pessoas que a fazem sua também quando comecei a fazê-lo. As pessoas necessitam de alguém que quebre o gelo ao falar com clareza sobre estas questões.

Há colheita, mas é preciso continuar a semear, a trabalhar a terra, porque do Céu vem a chuva: contamos com a ajuda de Deus. Não penso continuamente que o meu premio será a felicidade eterna, ainda que o tenha considerado em muitas ocasiões. São Josemaria dizia que “Deus nos quer felizes aqui na terra”. Só o seremos vivendo uma vida cristã coerente nos ambientes em que vivemos e trabalhamos.